Ambientado em Lisboa, mais concretamente no bairro da Graça, “A Imortal da Graça” é o terceiro romance de Filipe Homem Fonseca, que esteve há dias no festival literário Livros a Oeste, numa apresentação que acabou por ir muito para além do livro, debruçando-se sobre o próprio acto e o processo de escrita.
“Lisboa está em obras constantes. Na altura em que decidi escrever o livro, parecíamos estar sitiados, a viver numa zona de bombardeamento. A partir desse quotidiano de obras lembrei-me de uma história com a gentrificacão como pano de fundo, onde as pessoas que continuam a poder viver na cidade são as idosas, que graças a algumas leis ainda não podem ser despejadas. Imaginei que essas obras estavam de tal maneira presentes que acabavam por criar uma barreira, que impedia as pessoas de entrarem e saírem dos seus bairros, excepto os turistas e as crianças.”
Neste romance que ainda não nos passou pelas mãos há, por exemplo, velhinhas que lutam pelo estatuto de serem a mais velha das velhas, ou o Gabriel, um tipo que ganhou o Euromilhões mas que não consegue sair do bairro para levantar o prémio. Um transtorno que acaba por afectar todo o bairro, criando uma galeria de personagens de alguma forma excêntricas.
Poderá “A Imortal da Graça” ser lido como uma memória de uma cidade, lança João Morales na moderação. “O grande tema do livro a memória, a ideia de que as cidades são um organismo em permanente mutação, mas que esse crescimento não tem de implicar uma perda de identidade. É um livro sobre crescimento, sobre mudança, um alerta para o desbaratar da memória – isto sou eu a aproximar-me da idade de Matusalém. Venham os turistas todos, mas mantenha-se a identidade“.
Vivemos, afinal, tempos onde o típico se transformou em “very typical”, o pastel de bacalhau com queijo da serra é vendido aos turistas como uma iguaria centenária e se vai navegando entre o vintage e o retro como as tendências a seguir.
João Morales apontou, também, para o forte simbolismo presente no livro, bem como a ideia de perda e de fixação da memória que o atravessa. “Para além de ser o nome do bairro, Graça é também a personagem central, que ao contrário de Gabriel não quer sair do bairro. A forma como ela o consegue é tomando conta de Celeste, a senhora centenária. Durante o processo de fixação de memórias tendemos a deixar ficar as mais traumáticas, pondo de lado outras que foram importantes durante o nosso processo de crescimento. Graça é uma personagem que se caracteriza mais pelo vazio, alguém desprendido, que só tem interesse naqueles metros quadrados. A única vez no livro que toma contacto com a perda acontece metaforicamente através de um objecto”.
Filipe Homem Fonseca falou, também, do seu processo de escrita, bom como de uma dinâmica criativa onde são as personagens a dominar a cena: “O meu objectivo quando estou a escrever é o de que as personagens tomem conta. Este livro está repleto de opiniões que não são as minhas. E isto não é nada de esotérico, não baixou um espirito em mim. Quando atiras as personagens para dentro da história o universo transforma-se. Se dermos espaço para isso o livro acontece quase independentemente de nós. Na primeira reescrita, como diz Neil Gaiman, é quando damos a entender que tudo aquilo foi pensado desde o início. Este esteve repousado durante sete meses e, quando a ele regressei, já tinha deixado de lado os afectos, consegui ser mais analítico. E de repente há uma altura em que dizemos: está fechado, acabou”.
Saber o princípio e o fim de uma história é sempre meio caminho andado para a escrita de um romance, mas Filipe Homem Fonseca gosta de recusar tudo aquilo que surge como uma linha recta. “O meu processo de escrita não e linear. É uma constante reescrita, deito muita coisa fora. Estou em constante edição de mim próprio, é um processo doentio. Algo muito diferente do trabalho de escrita de guionista, apesar de partilharem constantes recuos e avanços temporais”.
Um processo que busca algo no leitor, no qual a técnica de escrita desempenha, também, um papel muito importante – ao lado da imaginação e dessa busca de inconsciência necessária para que as personagens tomem conta: “Gosto que haja uma ressonância emocional no leitor, não estou interessado no exercício intelectual. Para lá chegar existem técnicas de escrita. O anterior livro, por exemplo, era quase todo passado na cabeça de uma pessoa, era o livro daquele gajo. Este é um livro construído a várias vozes, onde o final me surgiu primeiro que o começo”.
Um processo onde, ao lado orgânico e às circunstâncias, se junta como que uma banda sonora única, que soa de forma diferente a cada escritor: “Esse lado orgânico da construção da história obriga o próprio escritor à descoberta. É natural que a história e as abordagens se vão moldando. E que as circunstâncias e as personagens que se vão criando acabem por conduzir a uma inevitabilidade. As histórias São como a música, sentimos a certa altura que o refrão esta a chegar. Tem a ver com a musicalidade que as histórias, enquanto organismos vivos, têm”.
Na escrita de Filipe Homem Fonseca, o real parece servir apenas de trampolim para a ficção, ele que tem como grande escola e alimento profissional a escrita televisiva: “A realidade, para mim, é uma plataforma para a ficção. E a ficção é o lugar onde encontro a verdade. A minha grande escola é a escrita televisiva, que envolve diálogo, respeito pelas autorias e, mais do que isso, perceber com quem se trabalha. Temos sempre de tirar o melhor das pessoas que estão a trabalhar connosco. Não sou tarefeiro. Não consigo lidar com historias que me São apresentadas com principio, meio e fim. No meu processo orgânico como escritor há uma necessidade de transformação. A escrita é uma questão de filigrana, de sustentação. Respeito mais a criação do que as pessoas com que estou a trabalhar, e elas respeitam-me por isso. Não quer dizer que tenha de existir a mesma visão, é preciso haver conflito para que as historias aconteçam. Mas por vezes há-que entrar neste jogo de enganos, e aí eu não tenho quaisquer escrúpulos”. “A Imortal da Graça” está disponível nas livrarias com o selo da Quetzal.
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Fotos gentilmente cedidas pelo Município da Lourinhã.
O Deus Me Livro esteve na Lourinhã a convite do Município da Lourinhã, organizador do festival literário Livros a Oeste – com o programador João Morales.
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