“A história da minha vida não era a história de acontecimentos que tinham ocorrido num período qualquer, mas sim a história da busca das perguntas certas, das perguntas que nunca me tinha lembrado de fazer.”
No final de 1980, a vida da pequena albanesa Lea Ypi, de onze anos, é abalada pelo cruzamento com manifestantes que gritam por liberdade e democracia. O regime totalitário, que a escola e a sociedade em geral a ensinaram a amar, está prestes a cair sem que ela entenda a razão. Afinal, julga viver num dos países mais livres da terra, e até encara como um fardo a liberdade de fazer certas escolhas. Esse momento leva-a a ponderar a hipótese de a liberdade e a democracia não serem a realidade em que vive, “mas sim uma circunstância futura e misteriosa da qual conhecia muito pouco”.
“Livre” (Casa das Letras, 2024) reconstitui esse processo de questionamento da autora – hoje professora e investigadora universitária no Reino Unido e na Austrália, especializada no estudo do marxismo e em teoria crítica –, mas também a história recente da sua família e do seu país de origem, tudo isso narrado de forma envolvente e apelativa.
As memórias de infância, tornam-se especialmente interessantes por a família descender de alegados inimigos de um regime que fazia o futuro do indivíduo depender dos seus antecedentes, ao ponto de os progenitores de Lea não terem sido autorizados a estudar o que desejavam. Tanto para protegerem a filha como para se protegerem dela – que chega a fazer-lhes a perigosa acusação de não amarem o suficiente o Tio Enver, como as crianças bem endoutrinadas chamavam ao chefe de governo Enver Hoxha –, usam na sua presença uma linguagem codificada que só mais tarde lhe decifrarão. Todavia, apesar destes aspectos sombrios, abundam no livro episódios divertidos – que podemos classificar assim sem complexos, visto que a própria autora conta como a “vida no antigamente” se transformou num “repertório de histórias de família divertidas”. Por exemplo, a exposição de uma lata de Coca-Cola como símbolo de estatuto social, ou a descoberta, através de um programa televisivo de ensino de línguas estrangeiras, de que as pessoas doutros países podem escolher em supermercados a comida de que gostam, sem precisarem de cartões de racionamento.

Porém, a mudança de regime e a tentativa de aproximação ao resto da Europa implicam novos sacrifícios, em nome de mais um ideal de futuro radioso que tarda a chegar. A “sociedade em transição” é afligida por desemprego, migração em massa, privatizações e esquemas em pirâmide que culminam na destruição das poupanças de metade da população – sendo a subsequente guerra civil de 1997 relatada através dos registos do antigo diário de Lea.
No seu conjunto, o livro é uma descrição cativante dos padrões que moldaram uma infância, das leis invisíveis que estruturavam o quotidiano num sistema totalitário, e do percurso de alguém que percebeu que só a si competia definir o sentido da própria vida. Além de tudo isso, é a concretização de uma recomendação da avó da autora: “Quando te é difícil ver o futuro com clareza, tens de pensar no que podes aprender com o passado”.
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