“Levante-se o Réu Outra Vez” (Tinta da China, 2016), de Rui Cardoso Martins, é uma conjugação feliz de ingredientes como crime, polícia, tribunais, arguidos, advogados e juízes, envolta em quantidades q.b. de realidade, anonimato e ficção. O tempero final é dado com laivos de humor e ironia. O resultado, em género de empratamento, surge sob a forma de cem histórias, de digestão fácil mas muito significativo substrato reflexivo e mensagens sublimares.
Produto de 20 anos de presença do autor em mais de 700 casos de justiça em sessões públicas de tribunal, o registo é eminentemente retratista, humorista e de crítica social implícita pelos papéis que as personagens revelam. Com uma simplicidade e arte incrível, Rui Cardoso Martins expõe parte substancial das grandes questões presentes na aplicação da justiça.
Através destas crónicas, originalmente publicadas no jornal Público, percorremos o racional de neutralização da culpa que acompanha quem comete crimes, como de quem incondicionalmente o apoia em núcleos restritos ou em comunidade alargada. A negação da responsabilidade, sendo o crime projectado como algo que acontece e não como resultante da intencionalidade de quem o comete, ilustra circunstâncias irresistíveis. Nestas situações, não sendo negada a validade da norma, esta é explicada de forma subjectiva, como se não fosse exigível o seu cumprimento em determinadas conjunturas.
Noutras circunstâncias é a negação do dano que domina o racional, escudada na ausência de prejuízo ou do juízo “não prejudica ninguém”, comum nos casos de vítimas abstractas ou ausência de vítima directa. A anulação das qualidades positivas das vítimas que poderiam gerar o sentimento de identificação, simpatia e culpa são outro dominante no posicionamento e discurso de algumas das personagens destas crónicas, como de tantos outros casos reais.
No final de cada história, em jeito de mote, fica reforçada a ideia chave segundo a qual, apesar de tudo – e para os intervenientes na aplicação da justiça -, existe a sensibilidade de diferenciar a reacção dos sistema, ponderando o cometimento de acto tipificado pela lei como crime mas não ignorando as características pessoais e condicionantes sociais do indivíduo.
A forma como quem comete crimes sente o sistema. A forma como os outros percepcionam o crime, quem o cometeu e a sua penalização. Em suma, a racionalização e justificação do acto criminoso, a sua censura e legitimação em determinadas circunstâncias de vida, a condenação pelos meios de controlo formal e social. “Levante-se o Réu Outra Vez” é uma recuperação muito fiel da realidade judiciária pela mão de Rui Cardoso Martins, hábil escritor, jornalista e argumentista.
A primeira parte destas crónicas, “Levante-se o Réu”, publicada em agosto de 2015 igualmente pela Tinta-da-china, abriu caminho para o volume que agora surge. A produção literária de Rui Cardoso Martins revela-se já significativamente mais vasta. O seu primeiro livro, “E Se Eu Gostasse Muito de Morrer” (2006), está na quarta edição em Portugal, tendo sido publicado em Espanha e na Hungria. O seu segundo livro, “Deixem passar o homem invisível”, foi premiado com o Grande Prémio de Romance e Novela, da Associação Portuguesa de Escritores/Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas.
Se o precedente não tiver sido suficientemente desafiante da leitura não há como ficar indiferente ao mote de António Lobo Antunes que, no prefácio, cita José Cardoso Pires e a forma como este recomendou Rui Cardoso Martins como alguém que escreve “coisas acerca de tribunais, tão bem cozinhadas que nem se dá pelo fogão aceso”.
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