Depois de no ano passado nos ter trazido David Mitchell, o LeV – Literatura em Viagem voltou a apostar num autor britânico para a entrevista de vida, o momento alto do festival. Autor de obras de se lhe tirar o chapéu, como “A Casa do Sono”, “A Chuva Antes de Cair” ou “A Vida Privada de Maxwell Sim”, Jonathan Coe foi a Matosinhos numa altura em que se prepara para editar o seu 12º romance, estando o 11º – “Number 11”, no original – ainda sem publicação em Portugal – o último a chegar às livrarias foi “Exposição”, publicado em 2014 pela D. Quixote.
Conotado com o sarcasmo, o sentido de humor e uma análise certeira às situações políticas que o Reino Unido tem atravessado ao longo dos anos, Jonathan Coe teve igualmente um passado musical, ainda que longe de alcançar uma faísca de estrelato. Fez parte de uma banda, tocou teclados para um grupo de cabaret feminista e, para ganhar currículo, escreveu letras para os The High Llamas, como recordou Hélder Gomes na introdução em estilo de banda sonora.
“É um pouco embaraçoso falar disso. Fiz aos 20 aquilo que os outros faziam então aos 15. Tinha a fantasia de ser um músico, mas não tinha o temperamento para vingar na música pop, na banda tínhamos medo de tudo. Devíamos ter-nos antes chamado The Introverts”, conta Coe, dizendo que chegou mesmo a escrever canções explicitamente sexuais, mas que a sua passagem pela música estava condenada a falhar.
À provocação de se ter tornado um escritor de sucesso apenas porque falhou na música, Coe diz ter tido inicialmente duas carreiras paralelas. E, se a música morreu precocemente, o início literário não augurava também nada de bom. “As primeiras novelas não venderam mais do que 272 cópias, as outras acabaram por ser destruídas. Foi um falhanço tremendo.
Estive em Londres durante 8 anos até ter tido sucesso com o meu quarto livro. Era mais fácil nessa altura, podia viver-se com pouco. Hoje em dia Londres é uma das cidades mais caras do mundo”.
Jonathan Coe recordou as suas precoces tentativas de escrita, como ter escrito um romance policial aos 8 anos, onde atirou com Sherlock Holmes às urtigas e, apaixonado por um livro de comics por onde se passeavam detectives vitorianos, decidiu escrever uma história alternativa para essas personagens. Um momento que assume ter sido de alguma frustração pois, quando as 150 páginas foram levadas pelo pai para serem batidas à máquina pela sua secretária, regressaram apenas como 30. A escrita não é, ainda assim, encarada como um mistério, apenas o seu desaparecimento: ”A grande questão para a qual não tenho resposta é porque paramos de escrever”.
De seguida confirmou o mito, com uma costela urbana, de ter queimado um livro seu no quintal dos pais, escrito quando tinha 15 anos. “Foi uma das melhores decisões que tomei na vida. Encontrei agora um que escrevi aos 13 e acho que o vou queimar também. Se tivesse um filho de 15 que escrevesse uma coisa daquelas iria pensar que tinha problemas graves. O que aconteceu foi que, alguns anos mais tarde, me colocou frente a frente com a pessoa que tinha sido e que não gostei de ver”.
Mas terá sido a escrita uma questão de destino? “Nunca foi a minha ambição. Escrevo e é o que faço. No inconsciente deve ter ficado a ideia de fazer carreira disso. Sou infeliz quando não estou a escrever, é algo que tenho de fazer para atravessar a vida. Ser publicado e encontrar leitores foi algo que teve a ver com a sorte. Se não tivesse acontecido não sei o que teria feito”.
“What a Carve Up!”, livro escrito por Coe em 1994, acabou por lhe granjear o estatuto de alguém que é mestre na sátira social, o que acabou de certa forma por se tornar uma cruz. “Poucos dos meus romances são satíricos nesse sentido. Mas essa acabou por ser a minha marca, e isso tem sido mais um problema do que uma solução”. Aliás, para Coe, os leitores não deverão olhar para os romancistas como alguém que os ajuda a resolver os problemas, apenas como alguém que os entretém e os ajuda a levar vidas mais imaginativas.
Coe lê depois, a pedido de um dos entrevistadores, duas passagens de “What a Carve Up!”, que considera que o livro é uma metáfora para o tempo actual – uma espécie de imagem do brexit, onde se está fechado numa casa com um assassino, com os telefones cortados e sem escapatória à vista: “Fez-me sentir um dinossauro, escrevi-o há 25 anos. Não tenho memória de o fazer”. Brexit que é, para Coe como para tantos ingleses, um assunto incómodo: “Podemos arrumar isto e passar a outra coisa?”, pergunta, não negando que gostaria de ter inventado alguém como Boris Johnson – “uma personagem fantástica” -, ou mesmo Theresa May: “Se os tivesse criado poderia destruí-los quando quisesse. A realidade é demasiado absurda”. Como exemplo refere o romance “Number 11”, onde imaginou o cenário ridículo de um concurso de prémios para o melhor prémio. “Até que fui convidado para uma coisa assim. Senti-me um satírico perdido, porque nunca imaginei que teríamos uma situação real tão ridícula”. Sobre o Brexit acrescentará mais tarde: “O público inglês está dividido não entre esquerda e direita mas entre sair ou permanecer na Europa. O governo está confuso e é incompetente, mas a oposição não parece melhor. O que posso fazer é escrever e criar personagens que vivam estes eventos, ouvi-los e gravar aquilo que está a acontecer. Mas sou um romancista e não um analista político”.
Questionado sobre a relação da literatura com o humor, Coe confirma que será um género a evitar se a ideia for ganhar prémios e ter boas críticas. Algo que não o condiciona no que diz respeito à escrita. “Para mim o melhor é quando os leitores me dizem quando se riram ou quando os livros lhes deram satisfação, é por isso que escrevo. O humor faz parte da vida, passamos grande parte do tempo a rir e a dizer piadas. Temos de saber colocar a tragédia e o humor lado a lado”.
Uma das grandes transformações na sua escrita terá acontecido, algo que o próprio Coe disse já em entrevistas, com o nascimento das suas filhas. “O que descobri quando me tornei pai foi que a minha palete emocional se expandiu. As emoções extremas das crianças tiveram impacto sobre mim, fizeram-me mais generoso para com as minhas personagens. “What a Carve Up!” é um livro violento e cínico e, depois de 20 anos de parentalidade, talvez não o escrevesse. “Number 11” é também um livro negro, mas a história e contada por duas raparigas jovens, o que lhe dá uma perspectiva mais generosa, carinhosa e aberta”.
A política continua a estar em cima da mesa, surgindo a pergunta de se os conservadores, que parecem estar em maioria nos romances de Coe, são “mais engraçados que os extremistas de esquerda”. Coe responde desta forma: “Não divido as minhas personagens em linhas políticas. Crio um cenário no qual os personagens reagem e se relacionam, interessa-me o que acontece no dia-a-dia. Os meus temas são o amor, a memória, a família e a nossa viagem pelo mundo. A política é o que normalmente se mete no caminho”.
Sobre as adaptações à televisão ou ao cinema, três até ao momento, diz que a única que correu mal foi com “Os Anões da Morte” (Asa), “talvez por ter sido eu a escrever o guião. Fiz uma bagunça com aquilo. Também é o meu livro de que gosto menos. Mas até com uma má experiência aprendemos algo, como ter percebido que a clareza narrativa e importante. Se não houver isso apenas teremos confusão e desorientação”.
Quanto ao público, quis saber qual dos 12 romances é o favorito de Coe: “Aquele de que mais me sinto perto e sinto mais orgulho foi o último que escrevi. Estou numa fase eufórica, terminei-o há duas semanas. É uma reflexão de como vejo e sinto o mundo agora”. Porém, se recuarmos um pouco e olharmos os livros como filhos, o favorito é bem capaz de ser “The Rain Before It Falls”, que “teve uma viagem mais difícil. Não foi muito bem recebido nem recebeu boas críticas. Mas, apesar de não ter chegado a muita gente, tocou quem o leu”.
Pergunta-se de novo sobre a musicalidade, algo que acaba por estar reflectido nos livros de Coe: “Era uma criança preguiçosa e indisciplinada. Escrever qualquer pessoa poderia fazer, apenas era necessário ter uma caneta e um papel. Tive lições de piano clássico, mas achei que a disciplina não era para mim. Passei depois para um estilo mais livre de jazz onde podia improvisar. Mas cedo percebi que não teria talento. Mas por vezes ainda penso de forma musical enquanto escrevo a estrutura dos livros e os capítulos – a sua duração e a das diferentes partes. Esse sentido de ritmo ajuda o leitor a seguir a viagem, e as proporções narrativas vieram do meu amor à música clássica”.
Impelido a dar uma opinião sobre Portugal, Jonathan Coe escuda-se no politicamente correcto e em Hitchcock, sacando uma linha a “The Lady Vanishes”: “Nunca se deve julgar uma nação pelos seus políticos. E nunca faria um julgamento porque apenas fiz visitas muito curtas e principalmente a Lisboa. A impressão imediata é que tem uma sensibilidade e uma modéstia que não se costumam encontrar noutros países mediterrânicos”. Um verdadeiro gentleman, este Coe.
Fotos gentilmente cedidas pela organização do LeV – Literatura em Viagem.
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