“Teremos sempre paris
Construída de raíz (hum, hum)
Com cobertores no chão”
Os versos pertencem a Samuel Úria e ao mítico “Barbarella e Barba Rala”, tema que está, para a música portuguesa, assim como “Os Maias” estão para a sua literatura. E, mesmo que não sejam os cobertores a primeira coisa que nos vem à cabeça quando pensamos na capital francesa – provavelmente serão luzes, amor e livros -, a verdade é que Paris tem um elan que é só seu, a que corresponderá depois uma outra face mais escondida, obscura, identificável apenas depois de uma pequena escavação.
A Cidade Luz foi o tema que juntou no LeV – Literatura em Viagem, este ano sob o tema “O Romance das Cidades”, os escritores Tânia Ganho – também tradutora – e Enric González, conduzidos pela jornalista Maria João Costa.
Tânia que diz ter herdado “a veia literária e a miopia de um tio que escrevia poesia“, referindo que a ideia que temos de Paris continua a ser a de uma carta postal, imagem projectada a partir do imaginário cinéfilo: “Passeamos nos boulevards e esquecemo-nos da história do barão que, a mando de Napoleão III, mandou arrasar bairros para construir avenidas largas”, o que acabou por resultar na expulsão de muita gente para as margens da cidade. A escritora recordou os anos 60, quando os portugueses foram viver para a periferia, perdendo o acesso ao centro, vivendo em bairros de lata ao mesmo tempo que participavam na construção de Paris com hoje a conhecemos – um facto retratado na exposição Portugal Melhor, de Gérald Bloncourt, que esteve patente no Museu Berardo e que apresentou cerca de meia centena de fotografias inéditas sobre a vida dos emigrantes portugueses em França, tiradas a partir dos anos de 1950.
Mais tarde, nos anos 80 e 90, Tânia refere o momento em que os portugueses se tentaram juntar aos magrebinos para ganhar alguma visibilidade, mas o anonimato continua a persistir. “Continua a invisibilidade da comunidade portuguesa. Ainda não conseguimos digerir estes anos de emigração forcada”.
Enric pensou ser veterinário, mas o pai fez por levá-lo para outros caminhos. Aprendeu desde criança a pertencer a uma minoria – é do Espanyol de Barcelona – e, no dia seguinte a mais um ataque terrorista em Paris, referiu a “ideia de ferida” que atravessa a cidade, falando dos dois problemas que são intrínsecos à cidade: o terrorismo e um outro que “parte da sua personalidade” e que faz de Paris “uma cidade sitiada”. “Uma cidade de avenidas amplas onde se podem montar barricadas, onde não há uma estação de comboios que esteja no centro”, numa oposição constante à gente que vem de fora.
Quando perguntado sobre aquilo que lhe impele para a escrita, mais concretamente por ter escrito sobre Roma e Londres, Enric foi directo ao assunto: “Principalmente porque me pagam para viver lá”. Até porque, convenhamos, “escrever cansa muito”. Relativamente a Paris, Enric revelou uma das suas grandes fontes: a tradição de haver um porteiro português. “Quando necessito saber algo de Paris pergunto-lhe a ele. Se ocorrer alguma coisa, ele sabe quem chamar. Trata-se de um poder secreto, um caudal de informação mantido na sombra”.
Chega depois a hora de escolherem os autores que melhor traduzem Paris. Para Tânia, “Paris” de Julian Green (Tinta da China), é uma referência: “Diz aquilo que sinto”. Como pano de fundo e apesar de estar longe de ser o seu autor preferido, aponta Hemingway: “é inevitável”. Confessa adepta da “escrita das margens”, destacou também Olivier Adam, que “escreve sobre a classe média alta com uma postura de outsider”. Destaca também a Paris de Leila Slimani (de quem Tânia traduziu “Jardim do Ogre” e “Cancão Doce”), “onde há sempre uma tensão”. E, recuando na linha temporal, Gertrude Stein, Fitzgerald, Balzac e Sartre.
Apesar do convencionalismo – adjectivo por si usado -, Enric não deixa de referir “Os Miseráveis” de Victor Hugo: “Toda a França está neste livro, até o que os franceses odeiam sobre si mesmos”. Menção também para “uma reconstrução minuciosa de Paris” em 8-10 volumes escrita no século XIX – não descortinámos o autor -, “A Educação Sentimental” de Flaubert ou para Michel Houellebecq, que mostra “o vazio moral de Paris e da Europa, o contrário de Victor Hugo”.
A dicotomia luz/sujidade é também referida por Tânia Ganho: “Em paris os caixotes do lixo são de plástico transparente. Há um pensamento constante sobre o perigo. A vulnerabilidade e a sujidade fazem apreciar melhor o que há de belo”.
Enric considera que há “um problema profundo com o turismo”, numa cidade que se habituou a descrever-se a si própria como “uma cidade feliz”. Porém, e apesar de ser a maior em número de adultérios, Paris “vive em permanente contradição entre a ideia e a realidade: a dúvida e a obscuridade de quem lá vive e trabalha e o encanto de quem a visita”.
Enric fala ainda de Barcelona, “a cidade mais artificial e postiça do mundo. Uma cidade maravilhosa povoada por estrangeiros, que conserva um certo cosmopolitismo. As coisas vão continuar assim, na capital de um país inventado dentro de um estranho país a que chamamos Espanha”.
Tânia sente a falta de espaços de silêncio em Paris, que se está a estender a outras cidades.
“O silêncio que existia em lisboa também está a desaparecer. As nossas cidades estão a tornar-se desumanas”.
Quanto à sua cidade de eleição, Enric diz que esta seria Roma, pelo menos até ao ano passado: “Quem superar os primeiros seis meses, que são de loucura, irá apaixonar–se. Isto desde que não precise de hospitais”. Afastamo-nos depois de Paris para falar de tradição, jornalismo e redes sociais, numa conversa que não chegou a visitar qualquer uma das livrarias parisienses.
Quanto a Jerusalém, foi romanceada na mesa A Cidade Santa, onde se pretendeu, segundo o moderador Tito Couto, obter três diferentes visões: o lado religioso, apresentado pelo Sheik David Munir; a dimensão política e social, pelo escritor Paulo Moura; e um olhar sobre a literatura e as vivências pessoais de Miguel Miranda, também escritor.
“Meretriz ou princesa ferida abandonada pelos amantes?”, atira Tito Couto. Apesar de afirmar não ser um grande conhecedor da cidade, Paulo Moura diz que ninguém pode alegar desconhecimento sobre Jerusalém: “Está na política, na religião, na cultura. Entre o lado celeste e aquilo que é para cada um de nós, à importância que lhe atribuímos”. Paulo Moura referiu também a agitação e na polémica envolvidas na inauguração da embaixada americana em Jerusalém – foi antes do massacre ocorrido -, defendendo que “a ideia da guerra de civilizações está intrincada em Jerusalém: dois povos, três religiões. Com a ironia de as três terem nascido lá”. O autor de “Uma Guerra em Mossul” disse ainda ”acreditar muito no poder da ficção das guerras, como aconteceu no Iraque, uma mentira facilmente demonstrável”.
“O meu nome artístico é Sheik”. Foi esta a entrada escolhida por David Munir, que dissertou depois sobre as razões de Jerusalém ser um lugar sagrado para os muçulmanos, numa travessia feita de poetas, mensageiros e crenças. “É um lugar de todos, a única cidade que é infinitamente disputada, construída, destruída e reconstruída”.
Miguel Miranda falou da sua Jerusalém como o lugar da criação dos três heterónimos de Deus. Miguel que tem uma filha que se dedica ao teatro e que para lá trabalhar. “A primeira coisa que fez foi despachar o namorado brasileiro e casar com um árabe”, diz em tom de brincadeira, falando de Jerusalém como uma cidade “mágica e tensa ao mesmo tempo”. Miguel Miranda disse ter sentido, sempre que lá foi, “uma impressão de normalidade”, afirmando que “somos inquinados pelas notícias. A única coisa estranha era os jovens estarem a divertir-se todos de metralhadora ao ombro”.
Para Paulo Moura, enquanto não se resolver este conflito, que dura pelo menos desde a criação do estado de Israel, “nunca se irá resolver o problema de toda aquela região”, considerando que “a importância do Islão como um elemento religioso aglutinador é algo recente”.
Já David Munir defende que “o problema entre a palestina e o estado de Israel não é religioso”, antes uma questão entre dois estados. “Se quisermos conviver com o outro é possível a paz. O que trouxe a primavera árabe? Nada. O único país que mostra alguma tolerância é a Tunísia”. Um lugar que mostra “sinais do fim do mundo”, com três religiões diferentes à espera de Cristo.
Miguel Miranda partilhou o facto de esta experiência ter mudado a sua vida, considerando que “o estado de Israel e um problema insolúvel. A solução de dois estados e muito difícil. A tentativa de asfixia dos colonatos e terrível. A lei de Israel não permite que palestinianos e muçulmanos sejam proprietários”.
Tito Couto tenta tirar alguma carga negativa ao discurso, dizendo que “há uma doença chamada síndrome de Jerusalém. Uma pessoa normal vai a Jerusalém e começa a fazer discursos proféticos, a rezar, e acaba mesmo por ser tratada por psiquiatras”. Aproveita então para fazer um paralelismo com o Sporting, onde cada adepto passa por três estados: a euforia, a desilusão e a depressão. A verdade é que, horas depois desta conversa, dezenas de palestinianos eram mortos no dia da abertura da embaixada americana em Jerusalém. E, não muito depois disso, a Academia do Sporting era invadida por um grupo de indivíduos que agrediu jogadores, técnicos e destruiu o balneário da equipa. Vivemos de facto num lugar estranho, onde há cada vez menos espaço para o romance.
Fotos cedidas pela organização do LeV – Literatura em Viagem.
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