• Mil Folhas
  • Música Com Cabeça
  • Cine ou Sopas
deusmelivro
Deus Me Livro
Mil Folhas 0

LeV 2017: Apesar dos três Efes, a literatura sobreviveu para contar

Por Pedro Miguel Silva · Em 16/05/2017

Tinha tudo para correr mal, com o país em rebuliço e movido pelo milagre – e praticamente canonização – dos três Efes: em Fátima, com o terço iluminado, o Papa Francisco levava a fé a um outro patamar, relembrando que Nossa Senhora de Fátima não é aquela senhora a quem se vai pedir favores em troca de velas de tamanho real; em Lisboa, o Benfica transformava o Marquês num muito urbano Woodstock, juntando-se ao restrito grupo do Tetra; em Kiev, Salvador Sobral cantava por dois e trazia o caneco da Eurovisão para casa, com um tema que, para os camones, deve ter soado como soam para nós os Sigur Rós – não percebemos puto mas, misteriosamente, eleva-nos a alma. Ainda assim, a edição de 2017 do LeV – Literatura em Viagem dobrou a esquina da Santíssima Trindade lusitana com distinção, tentando mostrar a quem por lá passou que, mesmo nestes tempos turbulentos, seremos (para) sempre europeus de gema.

LeV - Literatura em Viagem, Deus Me Livro

Na conferência de abertura, intitulada “Einstein, viagens e literatura”, Carlos Fiolhais viajou pelas ondas gravitacionais para nos trazer uma versão mais humana de um deus da ciência, que terá ajudado gente como Picasso e Proust a criar universos artísticos paralelos – ou mesmo levado Mariah Carrey a dar o título da mais célebre fórmula conhecida a um dos seus discos, provando uma vez mais que não se deve julgar – e comprar – um disco pela capa. Nem mesmo um cientista.

LeV - Literatura em Viagem, Deus Me Livro, Rachel Cusk, Tânia Ganho

Com moderação de Bruno Vieira Amaral, Tânia Ganho e Rachel Cusk discutiram sobre a importância – ou o exagero – dos clássicos, e de saber se o cânone é ou não um mito urbano que apenas vai aceitando gente que, quando dá por si e pela eleição, já está a fazer tijolo. Para Tânia, “os clássicos são quem somos, a nossa herança“. Aqueles livros que vamos relendo, como amigos a quem recorremos quando as coisas começam a dar para o torto. Rachel diz-se desconfiada em forçar os alunos a aprender Shakespeare, até porque, para os próprios ingleses, o autor chega a ser “meio estrangeiro”. “Ler Shakespeare é como correr a maratona, um misto de dor e adrenalina“, sendo a dor “mal compreendida nos heróis modernos“. Defendendo que a definição de cânone é muito limitada, Tânia considerou ser necessário um novo ensino, “com mais emoção e paixão e menos forcing“, criterioso mas sem nunca piscar o olho à simplificação. Contra as previsões – ou não – das casas de apostas, foi Tânia Ganho que acabou por levar para casa o caneco – e que mostrou a melhor pronúncia.

LeV - Literatura em Viagem, Deus Me Livro, Frederico Lourenço, Hélia Correia

Com Tito Couto no papel de stand up moderator, Hélia Correia (“a nossa Afrodite das letras“) e Frederico Lourenço (“o Apolo coimbrão“) falaram dos tempos difíceis que vivemos, um upgrade à época descrita, em tempos, por Charles Dickens. De regresso à Grécia antiga, o seu território de eleição, Hélia referiu que “durante um tempo pareceu que os gregos iriam servir de exemplo ao resto da Europa“, mas que tal não aconteceu nem seria possível pensar hoje numa transposição do ideal grego para a moderna democracia. Ainda assim, o “respeito pelo humano” deveria ter sido uma herança eterna herdada dos gregos, bem como o uso livre da palavra: “Todo o cidadão tem de usar a palavra, e a palavra está a desaparecer“. Frederico Lourenço, que tem tido um papel exemplar e de verdadeiro serviço público – reconhecido com a atribuição do Prémio Camões – ao ter traduzido – e logo do grego – monumentos como “A Odisseia”, “Ilíada” e, mais recentemente, “A Bíblia”, disse estarmos a viver uma fase obscurantista, onde “as luzes estão-se a apagar“. Relativamente às traduções, considera que estas, “ao contrário das obras, têm um prazo de validade“, vendo nas suas algo que no futuro poderá ser melhorado por outras gerações. Para Frederico, a grande lição dos gregos foi a do contraditório e a vertigem do pensamento livre: “O importante é o contraditório, o pensamento, que devemos exigir de quem anda na política“.

LeV - Literatura em Viagem, Deus Me Livro

David Mitchell, numa entrevista de vida conduzida por Pedro Vieira e Tito Couto, trouxe o charme e o humor britânico, entrando desde logo no espírito de um fim-de-semana feito de crenças: “Sou uma virgem portuguesa“. Numa conversa que começou pela adolescência, Mitchell afirmou que mais do que o talento é preciso disciplina, e que apenas aos 25 anos seguiu esse mantra. Abordando a questão da criatividade, considerou-a uma qualidade importante mas que “é como uma App com a qual todos nascemos“. Na sua concepção de um ensino moderno, “são os departamentos das escolas que precisam de criatividade, não as crianças“. Afirmando que o processo de criação e pesquisa é diferente de livro para livro – “tanto leio a New Scientist como o The Economist” -, referiu que “vivemos em várias dimensões temporais, e a acreditarmos na reencarnação esta vida é apenas uma prequela“. “As Horas Invisíveis”, editado pela Presença o ano passado, foi deixado de fora da conversa, que apenas olhou para o célebre “Cloud Atlas – Atlas das Nuvens”, lançado pela Dom Quixote antes de a Presença ter comprado os direitos em tempo de vacas gordas. Mitchell recusou a ideia de o livro apresentar uma estrutura complexa, considerando-o “apenas pouco usual. Um pouco como As Mil e Uma Noites“. Ainda houve tempo para o escritor britânico elencar as 5 componentes que um bom livro precisa – enredo, personagens, ideias, estilo e estrutura -, mostrando-se satisfeito com a adaptação de Cloud Atlas ao grande ecrã – mesmo que não considere que se trata do seu filme. Para Mitchell, o importante no acto da escrita é não travar as obsessões e compulsões que habitam dentro de cada criador, essas “desordens mentais que não precisam de tratamento“. Prometeu ainda sete anos de felicidade a quem fizesse a primeira pergunta no público, saindo Matosinhos com o título de great knight.

LeV - Literatura em Viagem, Deus Me Livro, Rodrigo Guedes de Carvalho

Por esta edição do LeV passaram ainda outros nomes: Rodrigo Guedes de Carvalho, que depois de um silêncio literário de dez anos voltou às edições com “O Pianista do Hotel”; Valdemar Cruz – autor de “Retratos de Siza” -, que na ausência forçada do arquitecto Siza Vieira contou alguns episódios fascinantes vividos ao lado do maior arquitecto português; ou Jesús Carrasco e Xavi Ayén, que discutiram as muitas vozes e literaturas europeias.

Muitas das sessões tiveram casa cheia, mas há que reflectir na ausência de público que vai da adolescência à quase meia-idade. É certo que se está a trabalhar nas escolas como quem planta a semente a ver se a coisa pega daqui a uns anos, mas não deixa de ser preocupante ver este afastamento geracional em muitos eventos ligados à literatura. Não é nada que não se resolvesse com uma bandeja de shots ou um DJ a horas tardias, mas talvez se possa pensar, no futuro, numa ou outra sessão que faça pontaria ao público mais jovem. Não precisa de ser o Harry Potter, mas alguma coisa certamente se arranjará. Até para o ano Matosinhos.

 

Fotos: Booktailors

LeV – Literatura em Viagem

Pedro Miguel Silva

Pode Gostar de

  • Julian Barnes, Feira do Livro de Lisboa, Feira do Livro de Lisboa 2025, Deus Me Livro, Quetzal, Mil Folhas

    Julian Barnes vem a Lisboa para nos fazer mudar de ideias

  • Autobiografia Não Autorizada 2, Deus Me Livro, Tinta da China, Crítica, Dulce Maria Cardoso, Mil Folhas

    “Autobiografia Não Autorizada 2” | Dulce Maria Cardoso

  • O Macaco Rabugento: Não!, O Macaco Rabugento, Deus Me Livro, Crítica, Nuvem de Letras, Suzanne Lang, Max Lang, Mil Folhas

    “O Macaco Rabugento: Não!” | Suzanne Lang e Max Lang

Sem Comentários

Deixe uma opinião Cancelar

Siga-nos aqui

Follow @Deus_Me_Livro
Follow on Instagram

Mil Folhas

  • Julian Barnes, Feira do Livro de Lisboa, Feira do Livro de Lisboa 2025, Deus Me Livro, Quetzal,

    Julian Barnes vem a Lisboa para nos fazer mudar de ideias

    15/05/2025
  • Autobiografia Não Autorizada 2, Deus Me Livro, Tinta da China, Crítica, Dulce Maria Cardoso,

    “Autobiografia Não Autorizada 2” | Dulce Maria Cardoso

    15/05/2025
  • O Macaco Rabugento: Não!, O Macaco Rabugento, Deus Me Livro, Crítica, Nuvem de Letras, Suzanne Lang, Max Lang,

    “O Macaco Rabugento: Não!” | Suzanne Lang e Max Lang

    15/05/2025
  • Festival 5L, Festival 5L 2025, 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Juan Villoro, José Alberto Carvalho, Nuno Artur Silva, Desenha-me Uma Máquina, Isabel Lucas, Paul Lynch, Miguel Morgado, Bárbara Reis, Rui Tavares, Capicua, Samuel Úria, Utopia, Thomas More, Não Sou um Robô, O Ofício da Língua, A Canção do Profeta,

    Festival 5L: No que toca à Literatura, somos todos Beatos

    14/05/2025
  • A Mercearia Céu & Terra, Deus Me Livro, Crítica, James McBride, Dom Quixote, D. Quixote,

    “A Mercearia Céu & Terra” | James McBride

    13/05/2025
Acha o Deus Me Livro diferente? CLIQUE AQUI.

Archives

  • May 2025
  • April 2025
  • March 2025
  • February 2025
  • January 2025
  • December 2024
  • November 2024
  • October 2024
  • September 2024
  • August 2024
  • July 2024
  • June 2024
  • May 2024
  • April 2024
  • March 2024
  • February 2024
  • January 2024
  • December 2023
  • November 2023
  • October 2023
  • September 2023
  • August 2023
  • July 2023
  • June 2023
  • May 2023
  • April 2023
  • March 2023
  • February 2023
  • January 2023
  • December 2022
  • November 2022
  • October 2022
  • September 2022
  • August 2022
  • July 2022
  • June 2022
  • May 2022
  • April 2022
  • March 2022
  • February 2022
  • January 2022
  • December 2021
  • November 2021
  • October 2021
  • September 2021
  • August 2021
  • July 2021
  • June 2021
  • May 2021
  • April 2021
  • March 2021
  • February 2021
  • January 2021
  • December 2020
  • November 2020
  • October 2020
  • September 2020
  • August 2020
  • July 2020
  • June 2020
  • May 2020
  • April 2020
  • March 2020
  • February 2020
  • January 2020
  • December 2019
  • November 2019
  • October 2019
  • September 2019
  • August 2019
  • July 2019
  • June 2019
  • May 2019
  • April 2019
  • March 2019
  • February 2019
  • January 2019
  • December 2018
  • November 2018
  • October 2018
  • September 2018
  • August 2018
  • July 2018
  • June 2018
  • May 2018
  • April 2018
  • March 2018
  • February 2018
  • January 2018
  • December 2017
  • November 2017
  • October 2017
  • September 2017
  • August 2017
  • July 2017
  • June 2017
  • May 2017
  • April 2017
  • March 2017
  • February 2017
  • January 2017
  • December 2016
  • November 2016
  • October 2016
  • September 2016
  • August 2016
  • July 2016
  • June 2016
  • May 2016
  • April 2016
  • March 2016
  • February 2016
  • January 2016
  • December 2015
  • November 2015
  • October 2015
  • September 2015
  • August 2015
  • July 2015
  • June 2015
  • May 2015
  • April 2015
  • March 2015
  • February 2015
  • January 2015
  • December 2014
  • November 2014
  • October 2014
  • September 2014
  • August 2014
  • July 2014
  • Contacto