12, 13 e 14 de Maio de 2017. Ainda algumas das vozes da nova literatura europeia se preparavam para intervir e já se anunciava a próxima viagem do Lev – Literatura em Viagem, num fim-de-semana marcado por uma caminhada de 5km através das estantes e das quatro gerações familiares de Pacheco Pereira, do apelo à solidariedade, ao despertar europeu e à memória sem rancor de Claudio Magris e do humor judaico-inglês de Howard Jacobson, que declarou a comédia como o coração da Literatura.
“A história da Europa é, também, a história dos seus livros“, afirmou Pacheco Pereira na conferência de abertura, falando da viagem como algo de essencial para a construção europeia levada a cabo pela literatura, tenha sido ela conduzida pelos argonautas, tomada pela Odisseia de Ulisses ou acompanhado Dante numa descida aos círculos do Inferno. Uma viagem que, ao defrontar os deuses, recusar as limitações e abraçar o conhecimento, funcionou sempre como a metáfora da própria vida. E, se o ponto de partida foi a Grécia, o itinerário incluiu revisitações a Shakespeare, Camões, Thomas Mann, Orwell ou Kafka, perfumados com os componentes psicotrópicos encontrados por Alice no país das maravilhas ou do outro lado do espelho. “Eu sou como o quadro de Arcimboldo, sou feito de livros“, rematou Pacheco Pereira numa viagem de séculos bem espremida numa hora.
“A nossa solidariedade tem de ser concreta e não genérica“. Quem o disse foi Claudio Magris, conhecido entre nós (sobretudo) pelo “Danúbio” e de quem a Quetzal acaba de publicar “Uma Causa Improcedente”, e que aproveitou as perguntas de Rui Tavares para navegar como quis pelo mundo dos refugiados e revisitar parte da sua carreira literária.
Ainda que considere que o problema dos refugiados não está na sua passagem ou na construção de um muro que os deixe do lado de fora, Magris disse acreditar que um dia os estados europeus possam ser parte de uma Europa alargada – mesmo que, por enquanto, o bloqueio e a paralisia europeias sejam a sua face mais visível.
Magris falou também da dificuldade humana de achar que as coisas demasiado bonitas ou feias possam mudar, fazendo com isso a ponte para o seu mais recente livro, onde um homem vai construindo um museu de guerra para a paz. Um museu que, para lá de objectos – que acabam por não passar de “notas de rodapé” na história universal -, procura os nomes dos delatores, acabando por ser uma espécie de Decameron da literatura e da vida. Afinal, “os grandes romances do século XX são obras falhadas“, tudo porque assumem esta fragmentação e, sobretudo, o delírio humano.
Howard Jacobson ganhou o Booker Prize com “A Questão Finkler”, mas disse que não esperava mais de quatro pessoas na sala – incluindo ele e os moderadores Tito Couto e Pedro Vieira – um optimismo que herdou de uma mãe que sempre o tentou proteger contra o desapontamento. Com uma mistura explosiva de humor judeu e inglês, tratou de assumir o papel de excelso comediante, fosse para falar do casamento – “Não fiquem desapontados se o vosso primeiro ou segundo casamento não resultarem, é preciso prática” – da essência judaica – “Os judeus têm piada porque sabem que a vida não tem piada” – ou da relação que mantém com os outros escritores – “Cada escritor é um inimigo. Desconfio do altruísmo entre escritores.“
Falando dos dois títulos publicado entre nós, Jacobson referiu-se a “A Questão Finkler” como um livro sobre a amizade entre homens que, segundo ele, são seres “muito dados à tristeza.” Já “J” incide na importância da identidade e da viagem genética, centrado numa comunidade que fez desaparecer o objecto do seu ódio mas que, ainda assim, continua infeliz, preparando de forma sinistra o seu regresso para que possa voltar a odiar.
Desafiado a nomear aquilo que faz a boa literatura, Jacobson preferiu apontar algo que a boa literatura não deve ter – um feiticeiro -, não escondendo o ódio de estimação que tem por Harry Potter e por todo o mundo da fantasia. Não escaparam os comentários políticos – “Os palhaços parecem estar de volta e desta vez têm o poder da televisão” -, uma visão sobre a democracia – “Sinto medo quando as pessoas tendem a concordar umas com as outras” – ou uma definição muito própria de um bom romance – “Um bom romance é um livro que temos de pousar muitas vezes.” Com muito humor e alguma polémica, Howard Jacobson foi sem dúvida a figura maior desta edição do LeV.
Mas houve muito mais, desde uma viagem pelo mundo inteiro com dois viajantes incansáveis – Paulo Moura e Gonçalo Cadilhe -, uma conversa de café entre duas escritoras de diferentes gerações – Teolinda Gersão e Patrícia Reis -, uma receita literária – e com algum cinismo pelo meio – para salvar o mundo – cortesia de Ella Berthoud e Clara Ferreira Alves -, um percurso entre as cidades e as serras ou, se preferirem, entre a familiaridade e o abismo desconhecido – como o colocou João Ricardo Pedro na companhia de Alberto S. Santos e David Toscana.
Com a afluência e o entusiasmo que conheceu este ano, não será de espantar que a próxima edição do LeV decorra num espaço alternativo ao da Galeria Municipal, fazendo, também ele, uma viagem de curta duração. E, se possível, repetindo a companhia do Senhor de Matosinhos.
Fotos gentilmente cedidas pela Booktailors.
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Em breve publicaremos entrevistas a Paulo Moura – autor de “Extremo Ocidental” (Elsinore, 2016) – e Ella Berthoud – autora, juntamente com Susan Elderkin, do livro “Remédios Literários” (Quetzal, 2016.
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