“No seu funeral, a ex-mulher dele, a última, abraçou a minha mãe, a penúltima. As duas choravam muito. Ela disse lhe ao ouvido: «era um filho da puta.»“
E entre este choro de nervos, queríamos ouvir dizer: “«O Mostrengo que está no fim do mar» ficou no fundo do mar. Matámo-lo. Fomos nós que demos cabo dele“. Mas não. Sabemos que não, e o testemunho de Madalena Sá Fernandes, em “Leme” (Companhia das letras, 2023), denuncia precisamente isso: os monstros erguem-se constantemente, seja em noites de breu, do fundo das memórias ou das manhãs claras em que um cheiro bom serve de gatilho, mostrando a esta menina-mulher que não dá mais para relativizar.
Relativizar pode ter sido um refúgio mas, com o passar dos anos, tornou-se numa ruga precoce, uma mancha, defeito ou bolha que a incomoda na sua existência de adulta e lhe prejudica um desenvolvimento equilibrado. Desabrochar sem um lugar para crescer em segurança e no meio de gritos e jogos obsessivos deixa a sua marca, e estende garras que obrigam a uma purga – Sá Fernandes diz ao leitor que tal só poderia acontecer pela escrita: “(…) o poema do Mostrengo lembrava-me o Paulo. A palavra Mostrengo lembrava-me o Paulo. Alguma coisa na forma como se diz Mostrengo lembra-me a voz do Paulo. O tom do poema, a dimensão assustadora da voz do Mostrengo no escuro…“. É pela escrita que percebemos que o Mostrengo é enorme, e que a sua sombra é maior ainda.
“Só aos poucos me fui apercebendo da dor. Porque tem de se experimentar, e muito tempo, e calada, e só. Deixar a dor chegar devagar, senti-la claramente nas insónias. E então o corpo era pouco mais do que medo. (…) O corpo não sabia o que podia acontecer, mas, de noite, em vez de descansar, parecia preparar-se para fugir de forma decisiva, como se estivesse mais acordado de noite do que de dia.“
A dor, a vergonha, o medo, o pânico, mas também as memórias de momentos bons, fazem o leitor perceber a dualidade de sentimentos perante o Mostrengo pois, enquanto este foi crescendo, cresceu também a dúvida. Afinal, uma caixa de lápis tem muitas cores, e há cores que definitivamente pintam o cenário de forma bonita, sendo a dificuldade manter todos os lápis afiados e da mesma altura – ou, então, perceber que os que mais depressa levam desbaste são os que pintam de escuro e breu o quotidiano doméstico.
“No Paulo, havia tanta capacidade de criar momentos fortes e belos como de destruir tudo. E eu nunca soube calibrar o ódio com as doses de gentileza que, nos intervalos, também vinham dele.“
É precisamente pela escrita que a autora se revela e se abre perante o leitor, afirmando que existem memórias e traumas que são como caixas: ora estão todas empilhadas e devidamente fechadas, ora estão abertas e espalhadas pela sala. E ela sem saber qual vasculhar primeiro, o que fazer com o conteúdo. Seja a dor fininha, que se entranha por qualquer frincha, ou a complacência para o relacionamento, reconciliado entre as camadas de violência – e a qual das duas entregará o Leme.
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