Diz-se popularmente que as pessoas são como icebergues, que aquilo que sobre elas observamos consiste apenas numa parte do que verdadeiramente são – aquilo que permitem que os outros vejam. Assim como os icebergues, cada pessoa possui uma parte muito maior de si que não é visível – outros “eu” -, partes imersas que dificilmente são reveladas, e que se podem revelar como compensações à forma habitual de funcionamento. Ou, levadas ao extremo, constituir-se também como um transtorno de personalidade.
Em “Lei da Gravidade” (Porto Editora, 2023), Gabriela Ruivo serve-se da(s) personalidade(s) de um escritor, da ambivalência de uma jornalista, da existência vulnerável de várias mulheres, para revelar a forma como cada vida vai assumindo sentido conforme se vai cruzando com outras, como a individualidade precisa de ser revelada, a intimidade partilhada. Como quase todos precisamos de ser ouvidos, de testemunhas para a nossa existência, mesmo quando a mesma comporta doses impensáveis de dor e de frustração. Se não nos sentirmos reconhecidos, nunca poderemos desenvolver uma identidade. E ser reconhecido significa sê-lo na nossa autenticidade. Algo tão importante como respirar.
Gabriela Ruivo retrata as diversas formas de lidar com o luto e a perda, a mais pungente através da morte, mas também as perdas de auto-estima, de liberdade, de identidade, de clivagem emocional, de ruptura com a realidade. Em todos estes processos demonstra como é possível compaginar sonho e imaginação, idealização e confronto, na afectividade e no auto-conceito, lutando para a sobrevivência em relações abusivas. Mostra, inclusivamente, como remexer nas feridas pode ser mais doloroso do que o momento em que são feitas. Retrata, de forma muito clara, a forma como a dor patológica pode ser mais insuportável que a dor física, mostrando como alguns dos personagens lutam para não serem sugados pelo vácuo que se instala nas suas existências.
A escrita é estrondosa, clara e incisiva, desvendando o que compõe o sofrimento, escalpelizando a dor de uma forma tão clara que a transforma em natural, apelando à auto-aceitação e à superação do próprio leitor, qualquer que seja a sua própria existência, convidando-o a integrar a dor como parte da vida e condição para a (re)criação artistica ou tão só existencial.
Atribuindo a uma das personagens o papel de escritor, a autora explora a razão pela qual a literatura é, na essência, a própria vida. Fá-lo através de uma narrativa com vida, encadeada, cheia de magia e de substância. Revela conhecimento ou, pelo menos, grande sensibilidade quanto ao papel dos mecanismos psicológicos na existência de uma pessoa e, nomeadamente, de quem se retrata através da escrita. Ainda assim, impõe-se um alerta ao leitor: que se deixe ir e não pense em controlar o fluxo dos acontecimentos relatados, de os tentar arrumar na esfera temporal e espacial. Tentar deslindar alguns dos mistérios será como tentar interferir com a lei da gravidade. Nesta leitura é preciso ir para além do conceito do tempo como uma linha recta, aceitando-o como uma espiral, cujos anéis se vão sobrepondo, podendo o passado, o presente e o futuro coexistirem.
Gabriela Ruivo, prémio LeYa em 2013, desafia-se neste seu mais recente trabalho a falar de assuntos muito sérios, ecos de várias vidas, com uma ficção audaz e uma “brincadeira” com o conceito de tempo, demonstrando como podem ser ténues e forçadas as rupturas entre passado, presente e futuro.
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