O som dos passos das botas na terra, a grosseria das rochas, a limpidez da água, a ferrugem dos automóveis, o cheiro pleno das árvores, o canto dos pássaros, o silêncio dos homens. “Lá em Baixo no Vale” (Dom Quixote, 2025) faz-nos mergulhar num cenário tão real que se sente toda a rudeza de que a natureza e as relações vivem.
Esta é a história de dois irmãos numa montanha de Piemonte, no norte de Itália, num local remoto e com uma atmosfera agreste, rude e imponente, onde o passado assenta nos ombros de Luigi e Alfredo como um pedregulho roubado da margem do rio onde se banha uma grávida. Esta relação entre ambos, carregada de dor e solidão, rodeia-se de personagens igualmente frágeis, ora cansadas da vida – de ser –, embriagadas e distraídas com o correr dos dias, vividos entre o trabalho manual, duro e castigador, e o álcool que lhes parece dar algum alívio do peso de uma vida monótona e desesperançada.
Mas o fio condutor é outro, e é absolutamente inesperado tanto na forma como nos é introduzido, como no cuidado com que nos é segredado. Falamos de uma relação única, de uma relação de obsessão, talvez de amor profundo, ou mesmo apenas de uma lealdade tão segura e confiante de si que enternece o leitor e o deixa sem palavras. Uma cadela e um cão, ou um lobo, ou um cão-lobo, como se vem a discutir mais à frente, mas uma cadela e um cão juntam-se e vadiam, sobem o rio por uma das margens e ele, o macho alfa e o protector da sua amada, mata qualquer cão que se lhes atravesse à frente. Mas o que é curioso nesta viagem – nesta relação – é a capacidade que Paolo Cognetti tem em lhes atribuir emoções humanas que, naturalmente, se encontram moldadas a uma certa inconsciência canina, à aceitação dos acontecimentos e a comportamentos tão característicos dos seres vivos: o movimento em grupo, o instinto de sobrevivência e o sentimento de posse. Encapsulados em impulsos ingénuos e primitivos, a cadela e o cão unem-se de forma inquestionável e seguem, juntos, o seu caminho.

É precisamente o aparecimento de cães violentamente mortos que nos apresenta a Luigi e a Alfredo, bem como à pequena população do vale e às suas circunstâncias. Afinal, esta violência é bruta e demasiado real, de tal forma que se entranha na pele da populaça que, já por si, vive na dor transformada em raiva, como se nada importasse. E assim vamos acompanhando a história dos dois irmãos, tão diferentes como o dia e a noite, que disputam cada um pelo seu lugar na história familiar e na relação com o pai falecido um ano antes. Se o passado existe, o presente não interessa e o futuro é hipotético, desinteressante, mas as emoções são verdadeiramente reais e tão primitivas e palpáveis como as da cadela e do cão: falemos, mas de que vale entendermo-nos? Eu sofro, ele sofre, aceitemos. A falta de empatia e o desapego são gritantes e, ainda assim, tal como os animais, vão fazendo juntos os seus dias até existir uma ruptura completa.
“Lá em Baixo no Vale” é a aceitação dos dias entregues à indiferença, à falta de curiosidade e à inexistência de um futuro diferente, contrariando a imponência da natureza à sua volta que, no fundo, assiste à dor do homem – e da humanidade, dos animais – e que permanece indiferente.
Sem Comentários