Em 2001, Pepetela apresentou ao mundo Jaime Bunda, o Agente Secreto. Em 2003 deu-lhe um especial protagonismo na investigação da morte, em Benguela, de um americano. Na actualidade, em Portugal, as últimas peripécias deste agente secreto angolano – e deste livro – vão já na 7ª edição, continuando a dar nas vistas – ou não se tratasse de um jovem de inequívoca volumetria.
“Jaime Bunda e a Morte do Americano” (D. Quixote, 2019 – reedição) surge como romance policial sarcástico, uma narrativa detectivesca com crimes, vítimas e investigação à mistura, num retrato cru e crítico da classe política e diplomática: “Neste género de pessoas, caso dos embaixadores, pude constatar haver duas espécies: uma primeira, que assobia e olha as bundas das mulheres, embora os ouvidos estejam atentos às conversas confidenciais, é há a outra categoria, a que nem consegue interessar-se por uns seios a bambolearem-se à sua frente, não vêem nada, não se deleita com a qualidade do vinho que degustam, apenas atentos ao que devem e não devem ouvir. ”
Embora Pepetela apresente o narrador como uma entidade distante de si próprio, apolítico, associal e neutro de afectos e sentimentos, todo o livro resvala para a crítica política e social, para a apresentação de diferenças e concorrências entre províncias, Luanda e Benguela. Através de personagens caricaturadas é retratada a sociedade à época, as relações de poder e influência, o pensamento e o comportamento socialmente dominante.
“Não haver roubo era indício deveras preocupante para o chefe Aguinaldo Trindade, comandante local da polícia, pois um latrocínio vem sempre a calhar para justificar qualquer homicídio, sobretudo de estrangeiro importante“.
Júlio Fininho, o Robin dos comboios, durante anos incógnito, admirado por uns e censurado por outros, roubava quem julgava mais provido de recursos, ou na posse de algo que merecesse ser roubado. Pontualmente, questionava-se quanto à ética da sua ocupação secreta, mas lá continuava. Júlio Fininho apaixonou-se por Maria Antónia, meretriz: “Choraram os dois e se consolaram, dois caniços entrelaçados lutando inutilmente para proteger o outro dos rigores dos vendavais” da vida.
A narrativa vai oscilando entre as suspeitas e a investigação do assassinato do engenheiro americano, recentemente chegado a Benguela para trabalhar numa grande empresa, e a relação de Maria Antónia e de Júlio Fininho, dois relatos paralelos que acabarão por se cruzar.
O processo surge envolto em especulações e medos velados, de que a ocorrência seja entendida como um atendado ou a manifestação de algum anti-americanismo pressentido na sociedade angolana, sabido que era haver quem se sentisse novamente colonizado – desta feita pelos americanos.
Entre muitas outras artes e manhas, há sabedoria em Pepetela, prémio Camões em 1997, na forma como tira partido de uma palete de personagens suficientemente diversificada para garantir um retrato social acutilante. Na mesma representação, inscreve temas tão variados como as relações de poder entre classes sociais, a contaminação da polícia e da justiça pela política, o pensamento fragmentado da contemporaneidade relativamente aos limites do Estado e à corrupção.
A determinada altura, uma ideia emerge: “Vamos dizer aos nossos grandes ladrões: agora o vosso dinheiro vem para cá, invistam no país, passa a ser limpo e fica protegido. Reconhecemos a vossa propriedade perpetuamente, invistam na terra. Construam casas, fábricas, criem fazendas, dêem empregos e até, se quiserem, façam mecenas,… A sociedade decreta o Perdão Generalizado e partimos para a moralização do país e o seu desenvolvimento. Teremos políticos que pensarão primeiro na nação e depois nos seus interesses e teremos empresários com alguma ética“. Utopia? Sonho? Delírio? Uma teoria suportada na ideia de pôr ladrões a servir de polícias, aqueles que conhecem os golpes e a melhor maneira de os evitar.
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