Manuel Maria Barbosa Du Bocage, “homem-espectáculo, repentista talentoso e feroz” que “preferia perder fracos e fugazes amigos para não perder a oportunidade certeira de um grande poema com destinatário e efeito certos”, “abriu as portas à modernidade poética”. Viveu inconformado, nem sempre feliz. Foi amado e temido. Possuidor de uma voz livre e rebelde. Morreu doente, pobre e revoltado. Um poeta do combate. Palavras de José Jorge Letria que, em “Já Bocage não sou” (Guerra & Paz, 2016), procura realçar a vertente do poeta, para além do anedotário que o associa a situações jocosas, a obscenidades e ao relativismo moral.
Servindo-se da “energia libertadora da palavra”, José Jorge Letria “ajusta pequenas e grandes contas com coisas do tempo dele e do meu, porque é assim que se cumpre o destino profundo da literatura, alargando as asas do tempo até onde as palavras conseguem fazer ainda mais sentido, de forma constante e obstinadamente nova.”
Pressente-se neste livro um trabalho vasto e intenso, de pesquisa e reflexão, para um resultado que apraz. Trata-se de uma revisitação do autor à obra do poeta sadino, Manuel Maria Barbosa Du Bocage, realizada pela primeira vez em 2002, e no presente ano revista e ampliada a pretexto das comemorações dos 250 anos do seu nascimento.
Com uma escrita intimista é espelhado o papel social do poeta, a sua relação com a vida, o poder e a morte, a perseguição política, a censura eclesiástica e os (des)amores. O resultado são páginas que realçam aspectos ligados à vida e obra de Manuel Maria Barbosa Du Bocage, poeta que ”passou de personalidade a personagem arrancada a uma autobiografia atormentada e sombria. Foi o povo das tabernas e da boémia citadina e nocturna que o transformou em mito, mesmo sem nunca ter aprendido de cor os seus poemas e conhecido o essencial da sua tragédia pessoal (…) o imaginário popular se apropriou do boémio errante e sem tecto, sempre minguado de roupas, de dinheiro, de alimento e de afecto, e não do poeta que ele também era e cuja condição de criador talentoso e desafiador não pode nunca ser ignorado.”
Neste livro, através da narrativa autobiográfica de José Jorge Letria, alcançam-se memórias, percebem-se decisões, evocam-se experiências marcantes, acompanham-se momentos, etapas e iniciativas da vida do poeta, a sua relação com quem e o que o rodeou, transmitindo-se simultaneamente as sensações, sentimentos e emoções que essas vivências lhe despertaram. Para tal José Jorge Letria faculta-nos elementos relacionados com momentos da vida particular de Bocage e apresenta, simultaneamente, realidades sociais, humanas e políticas da época. Pelo meio surgem referências a outras figuras e momentos históricos com relevo na compreensão da relação de Bocage consigo próprio e com os outros, da sua individualidade e do conflito interior que o acompanhou.
Trata-se de uma narrativa memorialista com um fundo histórico-cultural, sujeito à filtragem e ao ganho da visão de José Jorge Letria, jornalista nos mais importantes jornais portugueses e escritor com vasta obra publicada em vários domínios, o qual, deleitando-se com as grandes inquietações que moldam a poesia de Bocage, pretendeu apresentar do poeta uma imagem diferente daquela que o anedotário popular dele continua a dar, acreditando que “voltar e continuar a ler Bocage é um acto de resistência e de liberdade poética, pois nada no seu estilo e na essência da sua obra prescreveu ou ficou com sentido limitado.”
No ano de 1805, aos quarenta anos de idade, consciente da aproximação da hora final, com os fantasmas mais tangíveis, mais aterradores, mais temidos, sob a forma da doença, Manuel Maria Barbosa Du Bocage escrevia:
“Já Bocage não sou!… À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento…
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.
Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa!… Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse, pura!
Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:
Outro Aretino fui… A santidade
Manchei!… Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!”
3 Commentários
É um dos poemas mais fortes da literatura portuguesa. Bocage demonstra aqui já uma sensibilidade pré-romântica. A sua morte prematura foi uma grande perda. Os versos finais são pungentes: “Rasga meus versos, crê na eternidade!”
Bocage, um dos grandes de nossa literatura e o meu preferido. Raciocinoo rapido, sarcastico, sensivel…Ja Bocage nao sou e uma triste ode a sua vida, desde a comparacao a Aretino ate a negacao de si mesmo.
Quando, no meu curso liceal, a matéria da disciplina (que então se chamava simplesmente Português) trouxe o estudo do grande poeta Bocage, o meu professor da altura mencionou, na sua dissertação, a existência de uma corrente opinativa que considerava que este soneto já não foi escrito por ele mas, como que ao jeito de homenagem biográfica, por um grande amigo do seu círculo literário, imediatamente após a sua morte, e deixado entre a documentação do seu espólio. Verdade ou falsidade, quis apenas deixar esta achega.
Cumprimentos,
Álvaro Brandão