20 de Maio de 2015. James Rhodes, um pianista clássico da era moderna, recebia do Supremo Tribunal inglês a autorização para a publicação de “Instrumental” (Alfaguara, 2017), a auto-biografia onde apresentava, de forma detalhada, os abusos sexuais que havia sofrido enquanto criança. Uma decisão que, segundo o tribunal, havia sido tomada em defesa da liberdade de expressão, isto depois de a ex-mulher ter tentado impedir o lançamento do livro com a justificação de que este teria um impacto negativo na vida do filho de ambos, então com 12 anos de idade.
Esta não é, contudo, uma biografia habitual. Afinal falamos de James Rhodes, o primeiro músico do universo da música clássica que teve um dos seus longas-duração marcado com o selo “Parental Advisory” – e que, aquando da passagem pela Warner, esteve no catálogo rock. A juntar a isto e para escândalo de muitos classicistas, alguém que não se importa que os espectadores batam palmas onde supostamente não devam, ou que assistam a recitais de gala de jeans e T-Shirt. Bastará ler a frase de abertura para que o leitor fique com uma ideia daquilo que o espera, nesta viagem onde a música surge como o elemento redentor:
“A música clássica dá-me tusa. Estou consciente de que, para algumas pessoas, esta não é uma frase de abertura muito promissora.”
Durante o tempo que passou na Arnold House, uma escola preparatória para rapazes em St John’s Wood, no norte de Londres, Rhodes foi repetidamente violado por um homem chamado Peter Lee, que trabalhava em regime de part-time como treinador de boxe. Depois de Rhodes ter apresentado queixa – havia apresentado décadas antes mas ninguém o tinha levado muito a sério -, Lee foi preso e acusado, mas morreu pouco tempo antes de poder ser levado a julgamento.
Para cada um dos capítulos, Rhodes sugere uma peça de música clássica, oferecendo uma banda sonora ao leitor que é, também, um convite ao mergulho neste fervilhante universo. Há também um pequeno texto escrito sobre cada uma das peças, muitas vezes sobre a forma como estas entraram na vida de Rhodes, que é simplesmente um primor. Atente-se nestas linhas sobre a faixa de Scriabin, nomeadamente o Último Andamento do Concerto para Piano, onde se alia – e isto acontece em todas as introduções – um saber enciclopédico com um toque de revolução a um olhar mordaz tocado pela contemporaneidade:
“Scriabin foi um pianista e compositor russo. Começou por compor música lírica a estilo de Chopin e gradualmente tornou-se mais aventureiro, atonal e disso ante ao explorar a sinestesia e a relação entre as cores e a música. Chegou mesmo a inventar um instrumento com as notas correspondentes às cores chamado clavier à lumière para ser utilizado na sua obra Prometeu: O Poema do Fogo.” E, mais à frente e pondo Sriabin e Rachmaninov frente a frente, atira isto: “Scriabin e Rachmaninov foram os Blur vs. Oasis da música russa do final do século XIX.”
Rhodes faz da sua vida literalmente um livro aberto, juntando, ao relato pormenorizado dos abusos, outras questões como o consumo desenfreado de drogas, a impreparação para o casamento e a parentalidade, os estranhos rituais que desenvolve durante cada concerto – que fazem dele um Nadal ao piano -, as reabilitações falhadas, o gosto pela auto-mutilação, os internamentos psiquiátricos, as muitas obsessões, as tentativas ou ideias de suicídio. Ou, também, o fraco auto-retrato que pinta sobre si próprio, que poderá ser resumindo como um “estafermo miserável e abespinhado“. Escolhendo um lote de adjectivos mais incisivos, “uma pessoa insuportável, fútil, egocêntrica, frívola, narcisista, manipuladora, dissoluta, aduladora, lamurienta, carente, comodista, mordaz, desapiedada e auto-destrutiva“.
A música, essa, ecoa em cada uma das páginas de “Instrumental”, surgindo como o alimento da redenção pessoal, ainda que o retrato que Rhodes faz do meio musical seja bastante corrosivo: “O sucesso, ao invés de ser merecido, é comprado, pago e prostituído, sendo-nos impingido manipulativa e insidiosamente“. Quanto a gente como Bach, Rachmaninov ou Bethoven, surgem triunfalmente como as primeiras estrelas rock que, ao invés de atirarem coisas pela janela, se atiravam a eles próprios.
Para além de muito bem escrito, “Instrumental” combina o detalhe e a obsessão com uma energia que contagia o leitor, num testemunho corajoso, muitas vezes visceral e quase sempre palpável, numa tentativa de purga que, ainda que esteja assumidamente condenada à partida pelo próprio Rhodes, serve de alerta para a obscuridade que nos cerca e que, por qualquer razão, deixamos que tome conta do mundo praticamente às claras.
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James Rhodes está de visita a Portugal para dois concertos: 13 de Novembro na Casa da Música e, no dia seguinte, no Centro Cultural de Belém.
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