Há uma torre sinistra no meio de uma floresta, um lugar tão inóspito que nem o Google Maps consegue encontrar. Ali decorre uma experiência social clandestina: vinte e seis rapazes foram criados desde nascença num regime de colégio interno levado ao extremo: foi-lhes ocultada a existência de mulheres, e as crianças acreditam que nasceram (literalmente) das árvores do pomar. O staff deste sinistro colégio é constituído integralmente por homens de barba rija, ex-presidiários a soldo que defendem o segredo religiosamente.
É tudo feito em nome do génio. Richard, ou como é conhecido na torre, o P.A.I., construiu esta experiência louca para que os seus pupilos não cedam às distracções ineficientes que são o amor, o desejo e a paixão – acredita ele que, poupados ao conhecimento do que é uma mulher, os alunos podem atingir níveis de genialidade nunca vistos. Mas entre os rapazes, cujos nomes vão de A a Z, há um que começa a puxar o fio da meada da mentira: o astuto J.
O P.A.I., de barbão negro, fato de couro vermelho e luvas a condizer, é o protótipo de um vilão que não destoaria na concentração de motards de Faro. Mas para as crianças ele é quase um pai, alguém que não erra, e as pessoas à volta dele, a Família, são benevolentes professores. Todas as manhãs os rapazes são chamados um por um a uma fria sala de metal cinzento, para uma Inspecção. Procuramos doenças, dizem os inspectores, as temíveis Vees, Placasores ou Moldus – mas a verdade é bem mais perturbante.
Entretanto, a alguns quilómetros na floresta, há outra torre, onde vivem as Raparigas-letra, a outra metade da experiência, comandadas pela esposa de Richard, a M.Ã.E. – elas são inteligentes, precoces, e nunca souberam o que é um rapaz. Em ambas as torres há um lugar que todos temem, chamado O Canto, que faz as vezes de papão neste mundo. Dois dos rapazes-alfabeto, A e Z, foram para lá enviados depois de terem sido expostos à visão de uma mulher – foram arruinados, diz Richard -, e quem vai para o Canto nunca mais volta. Há também um escritor residente, Warren Bratt, que as crianças conhecem como Lawrence Luxley, autor dos únicos livros que podem ler, escritos especialmente para eles (só com personagens masculinos). A pouco e pouco, o sentimento de culpa de Warren será a faísca da inevitável revolta.
“Inspecção” (Topseller, 2019) parte de uma premissa curiosa, um pouco delirante, para construir um divertimento pop nos terrenos da distopia. A ideia é original, mas não tão bem conseguida quanto a de “Às Cegas”, o fantástico livro anterior de Josh Malerman – que lhe trouxe a fama -, cheio de monstruosidades tão abomináveis que só a sua visão levava ao suicídio.
Neste livro o autor leva o seu tempo a construir a mitologia, detalhando o sistema repressivo que rodeia as crianças. Mas fica a sensação de que a história seria mais eficaz com menos cento e tal páginas (a descrição da torre das raparigas e das suas regras repete em larga medida a dos rapazes); e os sangrentos capítulos finais parecem algo atabalhoados e inverosímeis.
Também o facto de os rapazes e raparigas serem referidos só com uma letra (o inteligente Q, a tímida B, etc. ) faz com que seja tramado identificar e fixar os personagens secundários. Na cabeça ficam os protagonistas J e K, e os restantes miúdos têm a espessura dramática de uma folha de papel. Apesar dos pesares, Malerman continua um mestre a criar páginas e ambientes arrepiantes de tensão nos pontos mais vibrantes, forçando-nos a virar as páginas até à última linha. Mantenhamos a esperança em “Malorie”, a sequela de “Às Cegas”, prometida para Julho deste ano nos Estados Unidos.
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