(Textos breves sobre livros lidos em 2021)
“Sobreviventes” | Alex Schulman
Editora: Porto Editora
Lembram-se de “Memento”, filme do longínquo ano 2000 que nos trocou as voltas e nos apresentou ao grande Christopher Nolan? Pois bem, não é certo que Alex Schulman tenha dado grande atenção à película, mas a verdade é que “Sobreviventes” tem uma costela Mementiana, contada de forma temporalmente travessa. Uma história de três irmãos que, a certo momento da vida, se perderam pelo caminho, e que regressam agora à casa de infância levando com eles as cinzas da mãe. Entre o ajuste de contas e o exorcismo sentimental, “Sobreviventes” é um romance tenso, emocionante e desconcertante, uma cápsula de tempo sobre segredos, mentiras, traumas e a dificuldade tremenda que é – ou pode ser – a irmandade e essa instituição chamada família.
“A Cadela” | Pilar Quintana
Editora: Dom Quixote
É um daqueles romances curtos que, ainda assim, tem cal suficiente para alimentar as feridas escondidas e descobertas em cada leitor. Na costa da Colômbia, num “lugar escuro que fazia eco e cheirava a humidade como as grutas”, um casal em ruptura dorme em quartos diferentes, tendo já desistido da ideia de terem juntos um filho – parece não haver mezinha que valha a Damaris, uma negra de 40 anos, para quem a ideia de maternidade virou uma obsessão. Uma condição que parece encontrar algum consolo quando decide adoptar Chirli, a última cadela de uma ninhada de dez, que não parece querer corresponder ao desejo maternal de Damaris. Pilar Quintana transporta-nos até um lugar onde a natureza é implacável, uma geografia ideal para nos falar de morte, decadência do corpo, pobreza, classes sociais, loucura, arrependimentos e o peso imenso da culpa. Muito bom.
“Montanhas Cruzadas” | C Pam Zhang
Editora: Bertrand Editora
Tem um certo ar de “Meridiano de Sangue”, épico assinado por Cormac McCarthy, ainda que, por aqui, não haja um auto-proclamado xerife a cirandar com um colar de orelhas humanas ao pescoço. Passado durante a corrida ao ouro na América, “Montanhas Douradas” conta-nos a história de duas irmãs muito diferentes entre si, a quem cabe, ainda sem terem chegado ao princípio da adolescência, superar uma perda enorme: a dos pais. Enquanto Lucy se esforça por falar do futuro, Sam “só tem palavras para o passado morto e enterrado”. Um livro onde a paisagem se torna uma personagem de corpo inteiro, e no qual, numa viagem ao futuro que choca de frente com o passado, é explorada a questão racial num país em expansão, tentando responder-se a questões fundamentais como estas: o que faz uma família ser uma família? O que faz uma casa ser uma casa? O que faz um fantasma ser um fantasma? A haver um mantra, seria de certeza este: “Podem existir novos lugares, novas línguas, mas não existem histórias novas. Já não existem terras selvagens que não tenham sido tocadas e perturbadas pelos homens”. Um belíssimo romance de estreia assinado por C Pam Zhang.
“Tinta Simpática” | Patrick Modiano
Editora: Porto Editora
“…tendo nós, por vezes, lapsos de memória, todos os pormenores da nossa vida estão registados algures a tinta simpática”. Quem o diz é Jean Ebden que, ao abrir um dossier e dar com “uma simples ficha numa capa azul-celeste que desbotou com o tempo”, irá recordar a sua primeira missão para a agência de Hutte, onde teve de descobrir o paradeiro de Noelle Lefebvre. Neste exercício, no qual se transforma num escritor de fantasmas, mistura-se ou dilui-se a literatura na vida – e vice-versa -, assistindo-se a uma recusa da linha cronológica sem sobressaltos. Passado e presente confundem-se e roçam a transparência, “e todos os momentos que vivi na juventude aparecem-me, desligados de tudo, num eterno presente”. Um livro que convida a que, pelo caminho, se deixem espaços por preencher, de forma a que hajam sempre perguntas sem resposta. Modiano vintage.
“Luto” | Eduardo Halfon
Editora: Dom Quixote
Por que motivo terá a morte de Salomón, afogado no lago de Amatitlán aos cinco anos, permanecido um segredo de família – ou, pelo menos, um tema do qual toda a gente se recusava a falar? É esta a interrogação maior que levará o protagonista de “Luto”, que partilha o mesmo nome com o autor mas não deverá ser com ele confundido, a viajar até à velha casa dos avós, nas margens do lago de Amatitlán, onde em criança costumava passar os fins-de-semana até a família se mudar para a América. Um livro no qual, através dos olhos de uma criança, se faz o retrato da situação política da Guatemala, em memórias escritas num caderno em espiral onde se apontam as medições do tempo, essa “coisa real e indestrutível”. Um livro feito de frases polidas, uma escrita apurada e onde o humor caminha a par do espírito lírico.
“Piranesi” | Susanna Clarke
Editora: Casa das Letras
No ano de 2004, após 10 anos de muito trabalhinho, Susanna Clark lançava aquele que é, de caras, um dos melhores livros de fantasia de todo o sempre, um que recusou fazer parte da mania das sagas ou trilogias. “Jonathan Strange & o Sr. Norrell”, história da rivalidade entre dois magos, é também uma sátira social, e levou para casa prémios como o Hugo Award ou o World Fantasy Award for Best Novel. Seguiu-se um bem desenhado livro de contos, intitulado “As Senhoras de Grace Adieu e Outras Histórias”, e foi preciso esperar por 2020 – 2021 para a edição portuguesa – por “Piranesi”, o segundo romance que parece reinventar querer reinventar a história do Labirinto de Creta, construído pelo arquitecto e artesão Dédalo, a pedido do Rei Minos, para prender o Minotauro personagem mitológico com corpo humano e cabeça de touro. Um labirinto um pouco mais elaborado que o de Dédalo, “um lugar onde a arquitectura e os oceanos se confundem” que é composto por três níveis: os Salões Inferiores, domínio das marés; os Salões Superiores, domínio das Nuvens; e os Salões Intermédios, domínio das aves e dos homens. É sobretudo neste último que vive o solitário Piranesi, que vai registando nos seus cadernos de apontamentos – em entradas que o leitor vai lendo a espaços – as maravilhas da invulgar casa onde habita, como a localização, o tamanho e o tema de cada estátua – são milhares – e outros pontos de interesse, sabendo tudo sobre as marés que irrompem escadas acima. Dois dias por semana, recebe a visita do Outro, que vem para o guiar na busca pelo Grande Conhecimento Secreto. O mundo de Piranesi começa a ficar abalado quando surgem mensagens a giz escritas no pavimento da casa, que o fará olhar para o mundo e para os seus princípios de outra forma. Um livro que tem todo o ar de uma sessão de hipnose, de um sonho marado, escrito com a testa a arder de febre. Um labirinto mental onde Susanna Clark envolve o fantástico num manto poético e, pelo caminho, nos dá um valente sermão. Literalmente.
“Mulheres Que Não Perdoam” | Camilla Lackberg
Editora: Suma de Letras
Com as aventuras policiais do casal Patrik Hedström e Erica Falk em modo pausa – já lá vão dez volumes -, Camilla Lackberg continua a dar nos policiais com veia feminista, onde são claramente as mulheres a mandar no pedaço. Após o díptico Asas de Prata/Uma Gaiola de Ouro, história da alucinada vingança de Faye, chega a vez de “Mulheres Que Não perdoam”, protagonizada por três mulheres mal casadas que irão arquitectar no anonimato o crime perfeito: Ingrid, que deixou a carreira de jornalista em pousio para apaparicar um marido infiel; Birgitta, uma professora admirada por todos que vai adiando a ida ao médico para não mostrar as contusões que tomam conta do seu corpo; e Victoria, que veio da Rússia para a Suécia e se tornou prisioneira de um bêbado obeso e muito mal cuidado. Lê-se quase como um conto, e lembra-nos as saudades que temos de navegar, com a dupla Hedström/Falk, por entre o espírito romântico de uma Caras e o sangue-frio de um Dexter Morgan.
“A Absolvição” | Yrsa Sigurdardóttir
Editora: Quetzal
Se Yrsa Sigurdardóttir fosse dada ao futebol, muito provavelmente teria o estatuto de jogadora polivalente. É certo que o suspense é o elemento primordial dos seus livros, mas a verdade é que tanto nos leva a bordo de um iate assombrado, numa travessia marítima entre Lisboa e Reiquejavique – “O Silêncio do Mar -, nos conduz ao Fiordes Ocidentais islandeses para apanharmos o susto das nossas vidas – um calafrio literário chamado “Lembro-me de ti” que será, muito provavelmente, o seu livro maior – como, no caso deste “A Absolvição”, nos faz entrar de cabeça no lado mais negro das redes sociais. Uma história que arranca a partir de um filme divulgado no Snapchat, no qual um encapuzado arrasta um corpo de uma rapariga para o exterior, que quando descoberto se encontra marcado com o número 2. A investigação fica nas mãos do detective Huldar, com uma clara tendência para mulheres irritáveis ou temperamentais – junto dos colegas alcançou o estatuto de “louco” -, e Freya, uma psicóloga a quem caberá entrevistar as amigas adolescentes da vítima. Um livro onde Yrsa se debruça sobre o bullying, a falta de empatia, a tortura mental e a transversalidade do mal.
“A Minha Irmã É Uma Serial Killer” | Oyinkan Braithwaited
Editora: Quetzal
“Aposto que não sabiam que a lixívia disfarça o cheiro a sangue”. É com esta dica prática que começa “A Minha Irmã É Uma Serial Killer”, romance de estreia da nigeriana Oyinkan Braithwaited, nomeado para o Booker em 2019 e vencedor do British Book Awards Crime & Thriller 2020. Um livro bastante original sobre a irmandade e os laços familiares que nos apresenta a duas irmãs muito diferentes: “As semelhanças existem, temos a mesma boca, os mesmos olhos, mas a Ayola parece uma Barbie e eu faço lembrar um boneco de vudu”. Quem o diz é Korede, uma enfermeira bem comportada e dotada de um sentido ético irrepreensível, que vai desabafando – isto na ausência de um corpo acordado e lúcido – as suas mágoas com um homem em coma. É ela que nos narra a história da sua irmã serial killer, que dorme até tarde, é especialista em selfies – ideais para caçar namorados e matá-los de seguida – e parece imune a contrair sentimentos. Uma comédia negra e afiada escrita com um humor corrosivo.
“O Instinto” | Ashley Audrain
Editora: Suma de Letras
A maternidade tem servido para alimentar a edição de manuais de bem cuidar, romances fofinhos ou testemunhos tocantes e sentimentais, normalmente embrulhados em papel brilhante com lacinho a condizer. Em “Instinto”, Ashley Audrain preferiu centrar-se no lado mais ansioso e obscuro da maternidade, num thriller com muita tensão e propenso ao arrepio onde acompanhamos Blythe Connor, decidida e tornar-se a mãe afectuosa que nunca teve. Violet, porém, revela-se uma filha distante e que lhe recusa qualquer gesto de afecto, ainda que todos digam que tudo isso não passa de imaginação e insegurança. A chegada do filho mais novo parece trazer a maternidade desejada, mas apenas irá conseguir pôr em cheque um casamento e fazer regressar um passado traumático. Será a incapacidade para se ser pai hereditária? Poderá uma mãe não amar uma filha (ou vice-versa)? Poderá uma filha ser tão sacana que nos faça querer ter um talão de devolução? Um thriller com um toque de provocação que pinta a maternidade com tons pouco efusivos.
“Heather, Absolutamente” | Matthew Weiner
Editora: Casa das Letras
Imaginem “Parasitas”, filme maior do sul coreano Bong Joon-ho, convertido em livro pop americano. Poderia ser algo parecido a “Heather, Absolutamente”, o romance de estreia de Matthew Weiner, criador da série de culto Mad Men. No centro deste retrato impiedoso da desigualdade social – e das qualidades e defeitos da condição humana – está Heather, filha glamorosa da família Breakstone, campeã da riqueza e do estatuto. Quando os vizinhos começam a remodelação da sua penthouse, Bobby, um tipo criado na pobreza e na violência cujo nascimento, entre muito álcool e heroína, foi um verdadeiro milagre, ameaça o conforto e as rotinas Breakstone, com muito stalking e pensamentos obscuros que vai partilhando com o leitor. Weiner mantém o leitor em sobressalto até à última página, com parágrafos cirúrgicos e um desenlace que parece ter sido obra de um médico legista com propensões para o crime. Curto e surpreendente.
“A Última Casa em Needless Street” | Catriona Ward
Editora: Porto Editora
É um daqueles livros que tem sido levado ao colo por muito bom escritor, de Gillian Flynn a Stephen King, de A.J. Finn a Joanne Harris, e que conta a história de um assassino, de uma criança roubada e de um louco desejo de vingança. Catriona Ward desafia o leitor a percorrer uma linha temporal onde não existe linearidade, para além de testar ao limite a sua sanidade mental. Há uma menina chupa-chupa, que desapareceu onze anos atrás; há Ted, na altura um suspeito, que seguiu depois a sua vida na última casa de Needless Street, apesar de continuar a sofrer de bullying e a ver mortos os seus animais adoptados, julgando as pessoas de duas formas: pela maneira como tratam os animais e pelo que gostam de comer. “Se a comida delas é algum tipo de salada, só podem ser más pessoas. Se tiver queijo, é boa gente”; o senhor-bicho, que aconselhou Ted a escrever um “diário de sentimentos”; Lauren, a filha de Ted, impedida de conhecer o que se encontra para além da porta de casa; Olivia, uma gata com muita personalidade; Dee, “a cópia imperfeita da filha desaparecida”, que esquece o ballet e dedica toda a sua vida a encontrar a pessoa que levou a irmã; Karen, a cansada inspectora, de quem Dee foi amiga até deixarem de o ser; e um Senhor que se parece com tudo, com um rosto que tanto pode ser “um falcão de bico amarelo, e depois uma flecha verde, depois um mosquito”. Um livro onde nada é o que parece, enervante, obscuro e surpreendente, onde cabe ao leitor tentar trepar para fora das páginas e provar que o ensinamento da mãe de Ted não é coisa para levar a sério: “Tudo na vida é um ensaio para a perda”.
“A Boa Sorte” | Rosa Montero
Editora: Porto Editora
“Dir-se-ia que aquele homem não chegou a um acordo com a vida, ou sequer consigo mesmo”. Que homem é afinal este, de seu nome Pablo Hernando, que decidiu descer de um comboio antes do fim da viagem e se foi enfiar em Pozonegro, a “vilória mais feiosa do país”? Um lugar onde, para além de uma estação de gasolina e de um supermercado tudo é “deprimente, pardo, indefinido, sujo, a precisar de uma demão de tinta e de esperança”. Escrito por Rosa Montero, “A Boa Sorte” é um romance que transforma a vida numa dádiva, reunindo uma série de personagens teatrais: Raluca, caixa no Goliath – o supermercado -, que diz ser uma pintora e artista dedicada à exploração de um único tema: os cavalos; “a excêntrica dos piercings, uma adolescente rechonchuda com o cabelo pintado de preto, asas de corvo, roupa grotesca de antiga punk”; Regina, que se sente no papel de “objecto sexual, o remédio para uma necessidade de carne fraca”; Benito, o guna lá do sítio; ou Felipe, o velho que não vai a lado nenhum sem a sua garrafa de oxigénio, quase sempre ofegante e com tubos enfiados no nariz. Um livro de derrota, perda e redenção, de complexidades e contradições que, apesar de revisitar histórias de horrores familiares e de nos lembrar que “o Inferno está aqui e somos nós”, dá ao ser humano (mais) uma nova oportunidade.
“A Outra Metade” | Brit Bennett
Editora: Alfaguara
É um dos grandes romances publicados este ano em Portugal, uma saga familiar que atravessa quatro décadas e que conta a história de Stella e Desiree, as gémeas Vignes. Um livro que trilha o mesmo caminho literário – e temático – de boa gente como James Baldwin ou Toni Morrison, transportando o leitor até uma pequena localidade no estado sulista de Luisiana, onde a comunidade negra, geração após geração, se vai esforçando por aclarar a pele, celebrando e replicando casamentos mistos. Após a morte do pai e da humilhação da mãe, as gémeas adolescentes decidem fugir juntas de um sítio ao qual ninguém parece conseguir escapar, numa viagem que acabará por ditar o seu afastamento. Não se limitando a abordar questões de género e de raça, Brit Bennett escreveu um livro sobre reinvenção e recomeço, sobre o peso do passado, a culpa e os laços familiares, sobre aquilo que nos completa num lugar a que é difícil chamar de casa. Um livro belíssimo a que não falta alguma dose de provocação,
“As Telefones” | Djaimilia Pereira de Almeida
Editora: Relógio D`Água
É com a imagem de um cemitério de cabines telefónicas que tem início “As Telefones”, romance assinado por Djaimilia Pereira de Almeida, no qual assistimos, de ouvido bem colado ao telefone, à história entre uma mãe e uma filha, separadas por terra, mar e uma imensa lonjura. Um livro no qual se escuta “a língua telefónica, aquela em que casais se apaixonaram e se soube da morte de soldados nas trincheiras”, e onde, a duas vozes, vemos uma mãe tornar-se velha e uma filha tornar-se mulher, numa relação construída de longe que parece não estar destinada a se cumprir. Um livro feito de sons e de cheiros, de memórias e de afectos, de corpos e geografias que, para além de se ler como uma homenagem ao telefonema, é também um lembrete de como as relações são uma perda constante, como um cair dos dentes que durou para lá da infância. Mas igualmente sobre a liberdade, que surge aqui descrita de forma deslumbrante: “morrer como quem se apronta para um baile, ou uma velha sozinha, talvez nua, a dançar na sala, calçada”. Um livro que confirma Djaimilia como uma das grandes vozes literárias a seguir de perto.
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