Depois de uns anos valentes de travessia no deserto, sem direito a qualquer vislumbre de água ou banda sonora, pode dizer-se que os tempos mais ou menos recentes têm sido uma festa no que diz respeito à literatura musical na forma de biografias. Veja-se, por exemplo, o ano de 2019.
A Porto Editora publicou “Eu, Elton John”, autobiografia do artista que ficou conhecido como Rocket Man e que, a certo ponto no calendário terrestre, foi considerado o artista pop mais conhecido do planeta. Com o selo da PIM! edições pudemos ler “Mais Pesado do que o Céu”, biografia assinada por Charles R. Cross, que misturava de forma soberba a paixão de um fã conhecedor com o olhar crítico e apurado de um jornalista musical, tirando um retrato notável, comovente, revelador e bem documentado a um dos maiores ícones da história do rock – e que serve de porta de entrada ao estranho e inquietante mundo de Kurt Cobain. Quanto à Tinta da China, depois de em 2016 nos ter contado a história e as histórias da Bossa Nova com “Chega de Saudade”, na qual Ruy Castro reconstituiu a vida boémia e cultural carioca dos tempos da Bossa Nova, ofereceu-nos de bandeja “I`m Your Man: A Vida de Leonard Cohen” (Tinta da China, 2019), livro maior escrito por Sylvie Simmons, a biografia definitiva e exemplar de um dos mais respeitados, estilosos e fascinantes músicos e poetas de todo o sempre e mais além.
Nascida em Londres, Sylvie Simmons mudou-se para Los Angeles no final dos anos 70, onde começou a escrever sobre rock para várias revistas e jornais – um trabalho que desenvolve há mais de quatro décadas. É autora de livros de ficção e não ficção, como as biografias de Serge Gainsbourg ou Neil Young, escritora premiada e uma das mais reconhecidas jornalistas musicais da actualidade. Aqui, escreveu uma biografia que revela Leonard Cohen como um homem egoísta e egocêntrico, dotado de um charme de todo o tamanho – soube conquistar o respeito mesmo daqueles que não gostavam dele -, que esteve perto de ser rabi, foi ordenado budista e ainda piscou o olho à Cientologia. Um rei sem coroa entre as mulheres, que soube misturar como poucos o erotismo com a espiritualidade. Alguém que, fosse nos seus poemas ou nas letras de canções, escreveu com a força e a imagética dos haikus, deixando ao mundo um legado composto por canções de amor, hinos de perdão e manuais para se saborear a inevitável derrota.
A certa altura, Sylvie Simmons fala da escrita de uma biografia como a de um romance policial: “O biógrafo passa um tempo infindável a andar de um lado para o outro, a bater a portas, em busca de novas informações, depois a cruzar essas informações uma vez, duas vezes, muitas vezes, a perceber as motivações de cada protagonista e a verificar os álibis”. Feitas as contas, pode dizer-se que foi como se tivesse escrito uma biografia policial com a mestria de um Raymond Chandler, acabando o dia a carregada em ombros como um Philip Marlowe que, sorrindo, tratava de se ir servindo de mais bourbon.
Sylvie Simmons conduz o leitor por uma estrada de duas vias, navegando entre o percurso pessoal e familiar e as histórias que rodearam cada um dos seus livros e discos, permitindo conhecer o homem e a sua obra – que, no caso de Cohen, é um espelho imperfeito e difuso, onde a condição humana foi sempre observada através do véu da depressão. Alguém que coleccionou e descartou musas, que olhou para a vida doméstica como uma guerra, que atirou com a paternidade as urtigas até a descobrir mais tarde. Alguém que, nas suas palavras, foi incapaz de corresponder ao amor dos outros, mas que tão bem soube mostrar que a vida humana é, na sua essência e brevidade, feita essencialmente de falhas e imperfeições.
Acompanhamos o seu interesse pelo hipnotismo na adolescência, o despertar para a poesia com Lorca, o desejo precoce pelas mulheres, os seis acordes ensinados por um guitarrista espanhol que se tornaram a base de todas as suas canções, a confiança inabalável na sua escrita – e a obsessão com o perfeccionismo -, a licenciatura em Artes Liberais, a troca de Montreal por Manhattan, a relação com a mãe – o pai morreu quando tinha 9 anos -, as muitas musas que se atravessaram no seu caminho, a intensa paixão pela Grécia, a experimentação com substâncias várias, a procura de refúgios e santuários por tempos não muito longos, o difícil primeiro disco, as comparações com Dylan – ao nível musical, uma vez que fisicamente confundiram-no foi muitas vezes com Dustin Hoffman -, a relação com Nico, Lou Reed ou os Velvet Underground, os tempos passados no mítico Chelsea Hotel, a aversão à paternidade – e a sua descoberta tardia -, a depressão constante, o percurso espiritual que o levou por caminhos muito diferentes, a primeira e épica digressão europeia – com muito LSD à mistura -, a gravação de cada um dos seus discos – entre os quais um com um megalómano chamado Phil Spector, que lhe chegou a encostar uma arma ao pescoço enquanto lhe confessava o seu amor. Uma biografia excepcional a que, recorrendo ao léxico Coheniano, só poderemos celebrar com uma palavra: Hallelujah!
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