É a mais premiada escritora islandesa, também dramaturga, contista e professora universitária. Dos cinco romances que tem à data publicados, apenas o magnífico “Rosa Candida” havia sido lançado em Portugal, a que se juntou este ano “Hotel Silêncio” (Quetzal, 2019), que vem confirmar Audur Ava Ólafsdóttir como uma romancista de excepção, capaz de fundir poesia, ironia, esperança e redenção com uma classe de todo o tamanho.
“A minha pele tem um total de sete cicatrizes, quatro acima do umbigo, o ponto de origem, e três abaixo“. As palavras são de Jónas Ebeneser, narrador no limiar dos quarenta e nove anos, um tipo divorciado, sem vida sexual, pouco dado aos trâmites sociais e a obsessão de consertar tudo o que veja sem aparente conserto. Alguém que, depois de saber que não é o pai biológico de Nenúfar, a sua filha já bem crescida, decide partir para longe, levando consigo uma sempre presente ideia de suicídio.
Tendo como livros de cabeceira “Assim falava Zaratustra” ou “Para além do bem e do mal”, ambos de Nietzsche, Jónas decide pedir uma espingarda emprestada ao amigo Svanur, alguém que “não conversa, monologa“, para quando chegar a hora estar preparado, preferindo essa solução a outras mais gentis como o veneno ou cortar os pulsos na banheira: “Para que eu sinta o meu corpo, terei de dar um tiro nele, de retalhar a minha carne com uma bala de aço. É assim que fazem os homens“. Tanto ele como Svanur vivem privados de contacto feminino: Jónas não sente a pele de uma mulher há oito anos e Svanur foi confrontado com o facto de a mulher já não o amar.
O destino escolhido é de uma geografia nunca revelada, uma cidade de um país em guerra para o qual os vôos estão em saldo. Uma cidade para a qual leva apenas nove coisas, entre elas um berbequim, e que parece ir ao encontro dos pensamentos constantes do narrador sobre a morte, que a certa altura escreve isto no seu diário íntimo sobre “Para além do bem e do mal”: “O que me chama a atenção é a omnipresença da morte, uma página em cada três, tal como a maravilhosa experiência do sofrimento“.
Hospedado no Hotel Silêncio, Jónas irá descobrir, num confronto entre o eu e o corpo, entre o eu passado e um outro que se revela, que “no país da morte não é assim tão urgente morrer“, sentindo que tem um dever a cumprir e que, de alguma forma, lhe cabe descobrir a resposta interior a uma dúvida que o assola: poderão os homens voltar a ser humanos depois de se terem transformado em animais selvagens?
Este é, sobretudo, um livro de “Cicatrizes” – curiosamente o título original do livro na edição islandesa. Numa nota sobre o título escolhido, Audur explica que é uma palavra que, no islandês, é do género neutro, idêntica no singular e no plural, e que se pode aplicar ao corpo humano ou a um país ou paisagens destroçados por uma guerra ou pela construção de uma barragem. E que o umbigo, para alguns o centro do universo, é a primeira cicatriz que recebemos ao vir ao mundo. Nestas páginas, cabe ao leitor contar quantas cicatrizes tem já o seu corpo. Grande livro, este.
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