“O ser humano é só carne e osso e uma tremenda vontade de complicar as coisas.”
A frase é de Valter Hugo Mãe, não deste seu último romance, “Homens imprudentemente poéticos” (Porto Editora, 2016), mas do já consagrado “A máquina de fazer espanhóis”. A vontade do homem em complicar persiste, mas aqui, seguindo uma inspiração e tradição mais oriental, há também o espírito e um apelo às pequenas coisas, simples e delicadas da vida, que podem poetizar a nossa existência.
A linguagem luminosa e repleta de micro cenários a que Valter Hugo Mãe já nos habituou, povoa esta narrativa e traz até ao leitor um Japão antigo. Cenário longínquo que dá lugar a uma quezília entre vizinhos, permitindo-nos descobrir a vida de Itaro e Saburo, que através das suas lutas diárias medem forças e revelam uma cultura ancestral, testando também a força da Natureza e o poder da mesma no avanço desta história.
“Havia uma expectativa de salvação embora, inconfessável, se espalhasse o medo da contaminação da morte (…). Ou talvez o sábio fosse tão eufórico quanto as árvores da morte, satisfeito com a coragem antiga dos que se entregavam à matéria da natureza.”
As preocupações a que assistimos neste livro dão continuidade e são transversais aos vários livros do autor: a morte, os medos, a procura do sentido da vida, a importância de conhecer o outro ou até a busca pela serenidade estão espelhados nos detalhes com que se caracterizam as personagens, ou na forma que às vezes parece lenta e fragmentada, como a história avança.
“Para explicar que ser quem era já pressupunha mais raiz do que os troncos a servir de alicerces. Já tinha tanta pertença quanto a pedra despontando entre as madeiras do chão.”
“A pequena comunidade tinha-lhes compaixão e notava bem que se deixavam nos amores igual a serem crianças a vida inteira. Eram poucos normais, diziam assim. Faltavam à lucidez por solidão.”
Talvez não se ache logo um fio condutor harmonioso, mas antes um turbulento e que aparenta ter segredos: “Pensava que, por definição, todos os segredos eram modos de lonjura.”
No entanto, estes modos de lonjura, essas tristezas alheias ou os rostos e as honras fragilizadas, trá-las Valter Hugo Mãe nas palavras e nos pedaços grotescos que convoca para as vidas destas personagens, convidando-nos a acolhê-las, preenchendo um vazio que todos carregamos e a celebrá-las, na interminável viagem que é viver.
“O amor, na perda, era tentacular. Uma criatura a expandir, gorda, gorda, gorda. Até tudo em volta ser esse amor sem mais correspondência, sem companhia, sem cura. Que humilhante a solidão do amante. (…) O amor deixado sozinho é uma condição doente.“
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