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História de um Homem Comum, Deus Me Livro, Crítica, E-Primatur, George Orwell
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“História de um Homem Comum” | George Orwell

Por Pedro Miguel Silva · Em 14/12/2022

Quando escreveu “História de um Homem Comum” (E-Primatur, 2022) – Coming up for Air no original -, George Orwell estava em Marraquexe, a recuperar de um ferimento sofrido na Guerra Civil de Espanha e de uma hemorragia nos pulmões que lhe sobreveio. Estávamos no ano de 1938 e, por esta altura, Orwell tinha já escrito “Homenagem à Catalunha”, encontrando-se numa espécie de hiato artístico e militante, longe da escrita e do activismo.

Um pouco como Orwell, este homem comum, personagem central do romance, está num processo de retirada, avaliando o que foi conquistado ou perdido para trás da linha temporal, numa uma Inglaterra Eduardina prestes a exalar o último sopro antes da entrada na I Guerra Mundial. George Bowling, porém, não é homem para grandes confusões ou tomadas de decisão, recusando qualquer comprometimento político para se dedicar apenas a uma causa: a do egoísmo da sobrevivência e da manutenção do estatuto social. Ainda assim, a ideia de sublevação está lá, bem como um olhar clínico sobre o seu – o nosso – tempo e a sua – a nossa – geografia: “Nadamos em medo, é o nosso elemento”.

Tratava-se de um livro inédito em Portugal e que, ao pé de outros monolitos como “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro” ou “A Quinta dos Animais”, foi quase sempre remetido ao esquecimento. O que é – ou era, até agora – uma pena, pois mora aqui um outro lado de Orwell, onde espreita já, para lá do negrume, o humor, o sarcasmo, a ironia e alguma impiedade. Quem diria que Orwell, o artífice da mais negra distopia literária – onde não se descobre uma linha de humor -, poderia começar um livro desta forma?: “Por acaso, a ideia surgiu-me no dia em que fui buscar a dentadura postiça”.

Com 45 anos de idade, George não tem de si próprio uma estima por aí além, mas a verdade é que nem se importava muito com isso, parecendo estar a chegar ao ponto da crise de meia idade: “Bucha é o que normalmente me chamam. George Bowling é o meu nome verdadeiro. (…) Mas há quinze anos que eu era bom marido e bom pai, e estava a começar a ficar farto disso tudo”. Angariador de seguros numa empresa chamada A Salamandra Vooadora, George é casado com Hilda, a quem tira uma radiografia de corpo inteiro com estas simpáticas palavras: “A Hilda tem trinta e nove anos e quando a conheci tinha cara de lebre. E ainda tem, mas emagreceu e mirrou, sempre com um olhar tristonho e preocupado, e quando está ainda mais irritada do que o costume tem o trejeito de curvar os ombros e cruzar as mãos no peito como uma cigana velha por cima da fogueira”. Quanto aos filhos, dois, de 7 e 11 anos, despertam em George sentimentos pouco nobres: “Tenho um sentimento esquisito para com os meus filhos”.

Depois de ganhar algum dinheiro numa aposta, George decide virar costas a tudo para regressar a Lower Binfield, lugar onde viveu uma infância idílica, para pescar carpas num lago que décadas passadas ainda não conseguiu esquecer, certo de ir ao encontro do bom tempo existencial: “É sempre verão nas minhas recordações”.

Através da história de um homem comum, George Orwell escreveu um livro tremendamente humano sobre a efemeridade da existência, olhando a política de raspão – “As pessoas levavam a política muito a sério naquela altura. Semanas antes de uma eleição já estavam a fazer uma reserva de ovos podres” -, recordando o que é ser-se rapaz – “…andar na moina sem ser apanhado pelos adultos, correr atrás de ratazanas, matar pássaros, atirar pedras, azucrinar carroceiros e gritar palavrões” – ou resumindo a poesia da criancice, que a certo ponto da vida ficará ilegíivel – “Matar coisas – a poesia dos miúdos resume-se a isso. Mas há aquela curiosa intensidade, um desejo insaciável disto ou daquilo, que se perde em adulto, a ideia de que o tempo se estende infinitamente à nossa frente e de que tudo dura para sempre”. Pelo caminho fala-se do absurdo da guerra e do que esta faz às pessoas, naquele que será o mais humano dos livros de Orwell e que revela, em muitos momentos, uma honestidade cruel – talvez uma das mais verdadeiras formas de humanidade. A capa, à semelhança de quase todas as edições da E-Primatur, é belíssima.

CríticaDeus Me LivroE-PrimaturGeorge OrwellHistória de um Homem Comum

Pedro Miguel Silva

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