Estão a ver aqueles livros para totós, que tentam explicar temas mais ou menos importantes com uma linguagem quase ao estilo de um filme Disney? Pois bem, “Hereges!” (Gradiva, 2019) está muito longe de entrar numa onda de simplificação, reducionismo ou banalização, mas a verdade é que consegue, ao estilo de uma novela gráfica, apresentar-nos “o século XVII e a necessidade de uma nova compreensão do universo e do ser humano“. Ou, como avança o subtítulo, os assombrosos (e perigosos) primórdios da filosofia moderna.
Fruto de uma parceria entre o historiador de filosofia Steven Nadler (texto) e o seu filho Ben Nadler (ilustrações), “Hereges!” é uma introdução ao nascimento do pensamento moderno, longe de uma abordagem medieval que envolvia formais espirituais e poderes ocultos, a defesa da douttrina cristã e a devoção cega às teorias de Aristóteles e Platão. A partir daqui, a filosofia passará a proceder a partir das ideias claras e distintas da razão e do testemunho evidenciado pela experiência, num século que pertencerá a nomes como Galileu, Bacon, Descartes, Hobbes, Espinosa, Locke, Leibniz ou Newton.
O título, Hereges, é aqui usado não apenas no sentido religioso, mas também por se debruçar sobre o percurso daqueles que defenderam opiniões contrárias ao que era convencionalmente aceite como verdade, fosse na ciência, na filosofia ou na economia, naquele que terá sido um dos períodos mais brilhantes da história da filosofia.
A viagem começa no ano de 1600, quando Giordano Bruno, que tinha andado a ensinar que a Terra não era afinal o centro do universo, foi queimado vivo pela Inquisição Romana. Já Galileu, apesar de ter soltado um “e no entanto a Terra move-se”, teve mais sorte e juízo, tendo-lhe sido imposta a prisão domiciliária.
Ao longo destas páginas iremos conhecer Descartes, que acreditava que só os seres humanos têm alma, e que tudo o resto pode ser explicado de um modo mecânico, apenas através da matéria e do movimento – é dele o célebre “Penso, logo existo”; Francis Bacon, para quem a interpretação da natureza se deve basear na experiência sensorial e não em conjecturas metafísicas; Pascal, um tipo com uma perspectiva negra e pessimista da natureza humana; Hobbes, para quem tudo é corpo, até mesmo a alma, e que defende a obediência ao soberano, que tem a difícil missão de proteger a vida e a propriedade; Espinosa, que à boleia da Ética nos vem dizer que na natureza não existe bom ou mau, apenas que simplesmente existe, e que Deus e Natureza são a mesma coisa – e, também, que o livre-arbítrio não passa de um mito urbano e que deveremos esperar sentados pelos milagres (não vão aparecer); Leibniz, que defende que este não é o único mundo possível, mas que ainda assim é o melhor dos mundos; Henry More, que acredita que o espírito da natureza é um princípio activo e imaterial, que emana directamente de Deus; ou John Locke, que defende que só pelo consentimento dos governados poderá haver um governo legítimo, e que todas as ideias da mente provêm da experiência sensorial e da reflexão.
Rigoroso e divertido, “Hereges!” é um livro empolgante e acessível a quem tem torcido o nariz à filosofia, capaz de educar e divertir em proporções idênticas. Uma pérola científica aos quadradinhos.
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