Alguma vez olharam fixamente para o canto da vossa sala? Um canto por onde não só as vossas vidas passaram, como também as de tantas outras pessoas? É a partir deste conceito que nasce “Here” (Pantheon Books, 2014), um livro que nos torna observadores não apenas de uma história em particular, mas de vários fragmentos de vida(s) ao longo dos anos. A ideia de Richard McGuire parte assim por nos limitar o espaço mas nunca o tempo, apresentando-nos a um determinado plano espacial fixo – por norma o canto de uma sala de estar – no qual viajamos ao longo de centenas de milhares de anos (desde 3.000.500.000 a.C. até ao futuro de 22.175). Antes de existir vida ou depois de ela terminar, tal como a conhecemos, deparamo-nos em “Here” com toda a criação, da qual somos apenas uma ínfima parte. Apesar de transparecer sempre uma visão ampla da existência, o autor foca-se mais num retrato dos séculos XX e XXI, procurando mostrar uma multiplicidade de acontecimentos e emoções que decorrem precisamente no canto desta sala, alguns dos quais de cariz autobiográfico.
É na forma como retrata estas vidas que McGuire realmente constrói um trabalho tanto inovador como experimental dentro da Banda-Desenhada, uma vez que vários destes momentos são mostrados em simultâneo, recorrendo-se a pequenas janelas temporais que se abrem ao longo do plano principal do canto da sala. Desta maneira temos várias pessoas a habitar o mesmo espaço por página, ainda que se encontrem afastados uns dos outros por um bom par de décadas (ou até séculos). Tudo está presente neste trabalho, desde o nascimento até à morte, passando pelas inúmeras brincadeiras de infância, os namoros da juventude ou aquele momento tão especial em que pegamos ao colo um filho. Todos esses pequenos/grandes momentos que fazem parte das nossas vidas são vislumbrados a dada altura, juntamente com a carga emocional que lhes é característica. Alegria e tristeza, medo e coragem. É a vida no seu estado mais puro que encontramos em “Here”, observada em diferentes tempos e a diferentes velocidades.
Trabalhos como este, onde se transcendem géneros e se exploram linguagens, são sempre importantes para o conhecimento do funcionamento de uma determinada arte, neste caso a Banda-Desenhada. A criação de uma sequência a partir de imagens não tem de seguir sempre as mesmas convecções: é importante reflectir sobre a potencialidade em se usar uma linguagem verbal e pictórica quando criamos Banda Desenhada. McGuire debruça-se sobre o assunto para nos trazer uma leitura do espaço e do tempo, só possível neste formato e como nunca antes havíamos visto, onde o protagonista não é nenhuma das personagens mas antes o próprio leitor. Não é à toa que “Here” seja citado por autores como Chris Ware (“Jimmy Corrigan”, “Building Stories”), nomeado como uma das suas maiores influências.
Originalmente McGuire publicou “Here” em seis páginas a preto e branco, no volume 2 da revista RAW em 1989. Apesar do impacto deste conceito ter sido imediato, só em 2010 o autor regressará a este projecto com a ambição de o transformar num livro de 300 páginas e a cores – ambição concretizada no final de 2014 pelas impressoras da Pantheon Books.
A cor foi preponderante para ajudar a identificar períodos distintos, algo que, na curta original de 1989, não era tão relevante. Para esse efeito o autor inspirou-se em várias fotografias antigas, em particular na forma como as cores foram desbotadas pelo tempo. Desta forma, através de aguarela e do guache, McGuire trabalhou em torno das paletes de cores, como os vermelhos e verdes acinzentados das fotos dos anos 50 ou os amarelos dourados dos 70. Este é um daqueles trabalhos que, além de nos conseguir surpreender, coloca-nos a questionar e a discutir o que é a Banda-Desenhada e, só por isso, já merece a pena ser conhecido.
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Entrevista a Richard McGuire ao The Paris Review
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