Tendo já escrito mais de uma dúzia de romances, a norueguesa Vigdis Hjorth chega a Portugal com “Herança” (Livros do Brasil, 2021), obra publicada originariamente em 2016 que lhe valeu o Prémio da Crítica Norueguesa para a Literatura e o Prémio dos Livreiros Noruegueses.
Como o título indica, há uma herança no cerne da intriga: um casal idoso, após ter manifestado diversas vezes a intenção de tratar toda a prole com equidade, decide colocar duas casas de férias com uma longa tradição familiar em nome das duas filhas mais novas, registando-as com um valor o mais baixo possível, de modo a minimizar a compensação financeira a que os dois outros descendentes têm direito. Os preteridos são Bergljot, a narradora, e o irmão mais velho – os elementos inconvenientes da família, da qual se afastaram em maior ou menor grau. As irmãs favorecidas, por seu lado, são tidas como simpáticas e carinhosas, e declaram publicamente a sua felicidade por serem próximas dos pais e passarem bons momentos com eles. Poderá isso explicar o tratamento diferenciado? Ou será ele mais um golpe destinado a ferir e humilhar aqueles que ameaçam a fachada de uma família perfeita?
Na realidade, a herança que está em causa não é material. É um legado de medo, nascido de um segredo reprimido, capaz de envergonhar uma mulher adulta já com três filhos e alguns netos, quando a perturbação a arrasta para um abismo e a leva a sentir-se novamente uma criança. Dilacerada pela sensação de culpa por se recusar a ver os pais idosos – sabendo que isso a torna desumana aos olhos do mundo –, e pela impossibilidade de lhes perdoar aquilo que recusam admitir, Bergljot enfrenta comportamentos calculistas e mesquinhos, até tomar a decisão de interromper a leitura de um testamento com o seu testemunho.
O romance desenvolve-se em capítulos curtos, de tom diarístico, nos quais a narradora verte episódios da sua vida, entre sonhos e pensamentos. Alguns excertos repetem informação antes de a completar, como se mimetizassem o percurso mental da personagem. O resultado é inquietante, mesmo se intuirmos os eventos passados antes da sua revelação, devido ao sofrimento humano por trás das palavras e ao retrato implacável de uma hipocrisia interesseira, alicerçada na chantagem emocional e na vitimização.
Através da narradora, Vigdis Hjorth faz um jogo intelectual sedutor com várias ficções dentro do livro: Bergljot, que está profissionalmente ligada ao mundo do teatro, recorda-se de histórias que inventou em pequena; tanto ela como o irmão encontram a infância de ambos reflectida num romance distópico sobre a decadência de uma família; as vidas humanas são mais de uma vez comparadas a romances ou dramas; há também várias referências a um certo filme, cuja simplicidade no desenlace é contraposta às agruras da realidade. Ironicamente, a maior ilusão é a representação de uma família feliz e funcional, quando a aparente normalidade depende do silenciamento das vozes críticas, as quais terão de destruir essa imagem com a sua verdade, a fim de encontrarem paz.
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