Comecemos por nos colocar em perspectiva, através do pensamento de um jovem adolescente: “Se calhar, o mundo em que nós vivemos não é mais do que uma parte de uma parte de uma parte de uma parte de uma parte de um eletrão de um átomo de uma molécula de um cabelo de sabe Deus que gigante ou coisa esquisita em que nós não conseguimos pensar. E, se calhar, este gigante ou o que for não passa de um homem que vive numa barraca numa aldeia de uma freguesia de uma província de uma região de um estado de um continente de um planeta de um sistema planetário de um universo que é uma parte de um electrão de um átomo de uma molécula de outro cabelo de outro gigante miliotrilionésimas vezes maior”.
O transcrito pertence ao pensamento da personagem central criada por Julián Ayesta (1919-1996) no seu pequeno romance “Helena ou o Mar do Verão” (Dom Quixote, 2023), escrito em 1952 e agora publicado em Portugal pelas edições Dom Quixote. À época acolhido pelos leitores como uma das mais extraordinárias narrativas espanholas do pós-guerra, continua, quase um século depois, a afirmar-se de forma respeitosa entre novos leitores. Desde logo, a constatação da intemporalidade do lirismo, da elegância das pequenas narrativas que contêm grandes mensagens. No caso, uma história que retrata e acompanha diálogos intergeracionais, a evolução do pensamento e do comportamento da infância à adultez, a partir de flashes do quotidiano de uma família.
Na Espanha católica dos anos cinquenta, um rapaz aguarda a chegada do verão e dos primos, principalmente de Helena, confrontando-se com a transformação desta e com a sua própria metamorfose – a física, mas principalmente a relacionada com um desejo menos inocente, mais conflituante com os limites convencionados. O relato demonstra como as brincadeiras de sempre deixam de ser bem aceites, os limites impostos à intimidade que vai sendo descoberta e desejada, a percepção da relatividade da vontade individual face aos outros e ao contexto social. O relato, profundamente sustentado à época, revela de forma hábil a presença do sexismo no permitido e no interdito.
Regressando à frase inicial, desengane-se o leitor menos precavido quanto à narrativa de Julián Ayesta. Apesar do trecho escolhido e transcrito, encontrará um texto perfeitamente estruturado e pontuado, enriquecido pela capacidade de, ainda assim, soltar amarras, permitindo-se a excertos profundamente sensoriais. A transmissão da ideia de infinito e de relatividade existencial é feita com recurso a esta forma de escrita, com um tremendo efeito imediato, como aliás também acontece quando o autor, por oposição, quer transmitir um contexto especialmente estruturado, fazendo-o por intermédio de um texto com frases curtas, intermediadas por diálogos simples e claros entre as personagens, num cenário repleto de detalhes, luzes, risos, cheiros e notas de conversas.
Julián Ayesta deixa-nos por tudo isto um pequeno livro, mas um grande e muitíssimo bem conseguido exercício demonstrativo de como é possível compaginar a simplicidade e a extravagância, o convencional e a audácia. Pela critica, continua a ser enaltecida como uma prosa magistral, elegante e intemporal. Pelo que nos diz respeito, consideramo-la um convite de pleno direito a uma viagem onírica.
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