“As cousas árduas e lustrosas / Se alcançam com trabalho e com fadiga” reza o canto IV, estância 78 de ”Os Lusíadas”. Eis o conceito nacional de heroísmo, que tem sobrevivido no coração dos portugueses até aos dias de hoje. Já Pessoa dizia que “Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor” pois, de acordo com a crença lusa, a glória não se alcança senão com uma boa dose de sofrimento.
Em “Homens Sem Coração” (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2021) também Guilherme Piló, ao seu jeito, lança as redes ao estudo do ideal heróico nacional. Guilherme Piló Sales cresceu entre barcos e caixas de peixe e fez-se homem na faina. A sua quarta classe pode não lhe ter dado a destreza necessária para escrever um poema épico, mas nem por isso “Homens Sem Coração” deixa de ser um importante relato de um episódio notável da história marítima portuguesa: a Epopeia do Bacalhau.
No auge dos seus dezassete anos, Guilherme Piló resolve fazer parte desta aventura e, em 1960, oferece o seus serviços à frota bacalhoeira da nação, juntando-se assim a milhares de outros pescadores que, anualmente, convergiam no porto de Lisboa para encetar a viagem de 6 meses. Em terra, famílias choram a partida dos “bravos homens” que rumam aos mares da Terra Nova e da Gronelândia para a pesca do bacalhau. Chegados ao destino, a captura do pescado seria feita à linha, a bordo de dóris, pequenas embarcações individuais a remos — um método de pesca obsoleto e perigoso, que, no entanto, seria praticado pelos portugueses até meados dos anos 70.
Fiel aos ensinamentos dos mais célebres poetas lusos, Piló narra peripécias sensacionais e teoriza acerca da aptidão inata dos portugueses para resistir aos martírios da “lide do mar”. A estratégia de sobrevivência era simples e assentava na capacidade de deixar todas as emoções em terra firme — um feito que lhes valeu o epíteto de “homens sem coração”. Segundo o autor, só deste modo tantos pescadores-marinheiros sobreviveram às “durezas” da Faina Maior, que desafiavam os limites da resistência humana.
Incertezas, provações e espírito de sacrifício eram simples banalidades para os pescadores do bacalhau à linha. Tal como os navegadores de ”Os Lusíadas”, estes estóicos heróis traziam sangue na guelra e “água salgada nas veias”. Quando se faziam ao mar, a coragem era o único sentimento que carregavam na alma, conforme conta Guilherme Piló: “nada mais metia medo. Também não admirava, não tínhamos coração, éramos invencíveis!”
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