Revolução morta, revolução posta. É o que apetece dizer desde logo sobre o número 10 da Granta Portugal, com contos a gravitar em torno do tema das “Revoluções” (Tinta da China, 2018), e que é também o último número da edição portuguesa. A partir de agora – e com dois números já editados, de que falaremos mais para a frente do calendário – iremos falar em Granta Portugal | Brasil, um abraço transatlântico que vai de encontro à estratégia da Tinta da China em trazer até nós a melhor literatura brasileira, seja ela clássica ou contemporânea.
Coincidindo com o centenário da revolução russa, “Revoluções” conta com ilustrações de Cristina Sampaio e fotos de Alfredo Cunha, sacadas ao seu arquivo pessoal, um dos melhores momentos fotográficos oferecidos pela Granta portuguesa, onde vemos Portugal depois do 25 de Abril. Alfredo Cunha que teve, recentemente, uma belíssima homenagem intitulada “Retratos 1970-2018”, um livro de luxo e de capa dura com o selo da Tinta da China, que apresenta um percurso de quase cinco décadas dedicadas à fotografia.
Nesta edição pintada de vermelho, Susana Moreira Marques ensina “Como escrever sobre a revolução”, partindo do 1 de Maio de 1974 para, num exercício aparentemente formal, mostrar como tudo mudou e continuará a mudar; em “Beleza Infinita”, Isabel Figueiredo apresenta-nos a Tetyana, uma ucraniana que arranja as unhas mas acha as de gel pouco éticas, e que aos poucos vai estendendo as actividades do salão às depilações, massagens terapêuticas e de relaxamento, tratamentos anti-celulíticos e drenagens linfáticas, provando que “em terra de conformados, quem se mexe é rei“; Rui Cardoso Martins vestiu o avental para preparar uma “Salada Russa”, numa espécie de turismo cocktail a que não falta o tour Dostoievskiano e uma homenagem aos tradutores a partir de uma “cidade trombuda“; Andrei Platónov faz-nos atravessar “O Rio Potudan” de mão dada com Nikita Fírsov, um antigo soldado do Exército Vermelho, numa história atravessada pela aversão ao amor físico e a impossibilidade da felicidade, característica maior da literatura russa, sempre com a pobreza e o clima dilacerante por perto; Milan Kundera traz-nos “Um Ocidente raptado, ou a tragédia da Europa Central”, um quase ensaio sobre a Europa dividido em duas partes – a Antiga Roma e a Igreja Católica e uma outra ancorada em Bizâncio e na Igreja Ortodoxa – onde se fala, também, da identidade de povos e civilizações e do combate entre a Rússia e a civilização ocidental; “A revolução confiscada” por Golgona Anghel encarna o pouco espírito natalício vivido na noite de Natal de 1989, aquando do julgamento de Nicolae e Elena Ceausescu, tudo para esmiuçar uma necrofilia da História que explora e administra o passado em benefício do presente; Mouna Abouissa fala-nos de “Os camaradas e eu”, que fazem brindes a Lénine, Nasser ou Bashar Assad, num adeus parental e ao mesmo tempo um enterro do comunismo, na sequência do estado catatónico a que chegou o sonho socialista; Pola Oloixarac elege as “Condições para a revolução”, num jogo de sedução em redor de palavras como “urgência“, “mudança” e frases como “planos para o futuro da sociedade“, por alguém que teve “um momento metodologicamente marxista, mas de bandeiras peronistas” – para além de apresentar uma frase de azulejo: “Talvez descobrindo quem não somos fiquemos mais próximos de quem realmente somos“; Mário de Carvalho vive a “Revolução em passando”, onde o clima é propício ao desencontro e a idade é uma trincheira.
Os destaques maiores vão para “Revoluções”, de Jen George, o diário de uma ex-médium com uma relação que, segundo a linha doutrinária do partido, “resumia-se possivelmente ao sexo e a comermos pão de forma comprado no supermercado“, de modo a afastar “as muletas do conforto, da lealdade e da ilusão dos laços entre quaisquer duas pessoas, mitigando assim a vertente exclusiva das relações humanas“. Um conto habitado pelo humor e a ironia onde se luta, se sonha mas, acima de tudo, se deixa quase tudo pelo caminho.
O segundo destaque vai para “Peanuts”, de João Tordo, uma revolução familiar e muito melancólica que atravessa o álcool, o vício ao jogo e que tem, em fundo, “a banda sonora nunca antes publicada dos versos de Dylan Thomas”. No final, espera-se que o leitor encontre resposta a esta sempre pertinente questão: “Qual é a urgência de produzir o inútil?“. Está em grande forma o escritor português.
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