“In Memoriam” (Tinta da China, 2020), título escolhido para o sexto número da Granta em Língua Portuguesa, é habitado pela coexistência dos factos e das ideias que construímos sobre eles, montando um “instável museu de imagens, incertezas, ficções” – palavras de Pedro Mexia, o director da Granta deste nosso lado do Atlântico. Do lado de lá, o também director Gustavo Pacheco lembra que “toda a memória remete à transitoriedade da vida”, achando curioso que este volume, publicado em Novembro de 2020, coincida com o momento em que o Brasil terá já passado a barreira dos 150 mil mortos pelo coronavírus. “Também para isso serve a literatura: para lembrar”, afirma Gustavo, numa edição onde há talvez menos sentido de romance e um pouco mais de autobiografia e de não-ficção, resultando num dos mais interessantes números da Granta em Língua Portuguesa até ao momento.
Georges Perec arrisca, em Lembro-me, “uma tentativa de desenterrar memórias quase esquecidas, que para muitas pessoas, se não para todas, seriam dispensáveis, banais, demasiado comuns”. Recordações de quando tinha entre 10 e 25 anos, de um tempo “pertencente à esfera do mito” e que faz notar que a memória pode ser também uma falsidade.
Socorro Acoli pisa um Chão de estrelas, escrevendo a lista dos 10 momentos mais luminosos ou transformadores da vida. Num misto de loucura, doença, saudade e alguma mágoa, olhamos sobretudo para “o que o tempo faz connosco”.
Maria Antónia Oliveira confessa que “biografar é uma actividade muito ciumenta”. Em Cesário, vida de poeta: diário de uma biografia, assume o seu projecto biográfico como uma “tremenda embrulhada”, tanto por não haver espólio como pelos “papéis dele” terem ardido num incêndio da casa de família. Neste diário, que acaba por servir de impulso à escrita da biografia, Maria Oliveira procura a relação entre a arte e a vida, tentando alcançar o ponto de equilíbrio e a devida distância entre o que Cesário produziu e a pessoa que foi.
André Aciman caminha Na sombra de Freud, procurando trocar a beleza pela verdade num momento de epifania, numa cidade – Roma – que lhe deu muito e lhe tirou outro tanto – mas que, a cada visita, mostra que “uma parcela imensa da cidade permanece sepultada, longe da vista, efémera e ainda inacabada, somente lida nas páginas dos livros: ainda por construir”. Tal como a memória.
António Mega Ferreira escreveu um belíssimo Requiem por uma amizade imperfeita, neste caso entre F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway. Mega Ferreira que se mostra curioso relativamente a Fitzgerald por oposição a Hemingway, pelo seu “gosto pela bazófia, a paixão sanguinária pelas touradas, o machismo indisfarçado”. A história de dois seres literariamente brilhantes, do seu encontro e do seu “desamigamento posterior”. Por falar em desamigamentos, de lembrar a edição pela Tinta da China de “Desamigados”, de Mega Ferreira, a história de 11 amizades célebres que se transformaram em inimizades ferozes – a de Fitzgerald e Hemingway é uma delas.
Bucareste, cidade arrasada, de Philip Ó Ceallaigh, é um dos destaques maiores desta edição, um conto sobre uma cidade que foi a única em toda a Europa a ser destruída em tempo de paz. Regressa Ceausescu e o seu desejo de um palácio colossal à prova de terramotos, que levou ao arraso de uma das zonas mais antigas de Bucareste. Pelo meio fala-se da construção da Casa do Povo, do registo fotográfico de Andrei Pandele, do movimento anti-semita e do desconto dado às ditaduras, como acontece muitas vezes por cá com Salazar, relembrando que “só informações bem sólidas tê alguma chance de penetrar nessa espécie de névoa mental”. Uma elegia sobre deixar morrer o coração de uma grande cidade, onde descobrimos também o testemunho literário de Saul Bellow.
Alberto Manguel assina In Memoriam, o conto que dá título a este volume no qual Manguel confidencia que, para ele, as portas da Literatura se abriram com um professor que trouxe para as salas de aula Kafka, Cortázar, Rimbaud, Walter Benjamin ou Maurice Blanchot, lançando-o numa “vida de dependência da página impressa da qual nunca consegui desintoxicar-me”. Uma memória na qual a política é descrita como uma “actividade séria”, numa Argentina esfolada viva por sucessivos golpes e a instalação de uma ditadura militar, onde se regressa a essa fronteira entre o autor e a obra, entre aquilo que se é como pessoa e o que se constrói e deixa como obra ou legado. Uma fronteira entre dois lados desiguais, que nos interroga sobre como – e se – poderemos viver, aceitar ou separar a mistura entre génio e monstro num mesmo ser.
Doris Lessing regressa ao tempo colonial em A vida da minha mãe, recordando os dois tipos de imigrantes com que se deparou em tenra idade: “os que não conseguiam singrar na Grã-Bretanha e os que conseguiram, mas não encaixavam no perfil da «respeitabilidade britânica»”. Um conto onde brilha “o mesmo brilho ilusório e tóxico” comum a ambos os pais, frios tanto em relação aos filhos como ao futuro de ambos. Uma história do paradigma da adolescência e da fuga como única réstia de sanidade mental.
Catarina Mourão assina O tempo das alcachofras, “o único alimento que me conforta num desgosto amoroso ou quando estou mais melancólica”. Uma história labiríntica sobre a memória e os afectos, que olha para o futuro com um olho cinéfilo apontado ao passado.
O tumulto das gerações e as heranças que ficam atravessam A vida do meu pai, de Leonard Michaels, onde a frase que fica a ecoar qual machado suspenso sobre um pescoço menos precavido será talvez esta: “Quando Abraão levanta a faca sobre Isaac, o miúdo nem percebeu a sorte que tinha”.
Helena Machado é a autora de Quando se pergunta a hora é porque a hora chegou, uma história de decadência e de despedida que parece revelar um guia de conduta: “a hercúlea simplicidade da vida está no ser sem pensar o que se é, o estar apenas, agora e passageiro”. Um relato a 200 km hora onde acompanhamos a insanidade da velhice – como no Lear de Shakespeare -, um conflito declarado a lume brando entre irmãos e o isolamento como terreno primordial dos afectos.
Fleur Jaeggy indica A escolha perfeita, onde se aumenta o cansaço como forma de anestesiar a insónia ou a aceitação algo preversa de um suicídio perfeito. “Há quem tenha um dom inato para não se deixar enganar na vida”. Ou sentir, poder-se-ia acrescentar.
Uma cadeira de namorar põe duas pessoas De costas uma para a outra. Luísa Costa Gomes escreve sobre o nascimento e a morte de uma ideia para um livro, na qual uma amizade acaba por soçobrar soterrada debaixo da mobília e com a vida a meter-se de permeio.
Lorrie Moore profere um Obrigado pela companhia, onde a morte e a música de Michael Jackson serve de fundo a um casamento invadido por um grupo de motards que, no lugar errado e à hora errada, acabam por dar a bênção certa: “É preciso correr o risco de perder o equilíbrio, o risco de uma queda intermnável, para abrir espaço para a vida”.
Itamar Vieira Junior assina O grande luto, um conto enorme sobre a perda, o luto, a memória e o ritual da morte, essa “batalha inescapável”.
Em Nome Sujo, de Ronaldo Bressane, há muita arquitectura e uma grande dificuldade em distinguir entre passado e futuro, num passeio por São Paulo feito de ficção e muita contradição.
“Era o ansiado regresso para saldar a minha dívida com o chão onde, à nascença, fora enterrado o meu umbigo”. Palavras de Aline Frazão em Lucinda, onde o mar se revela o fim de todas as coisas e o único lugar onde se poderá buscar o perdão e a absolvição.
A fechar temos O matadouro de vidro, de J.M. Coetzee, que se lê um pouco como há umas décadas atrás ouvimos o “Meat is Murder” dos The Smiths. Um conto vegan – ou pelo menos vegetariano –, com muita filosofia à mistura, onde se lança o debate: “Por que é inaceitável para nós infligir a dor da morte, se infligimos a própria morte?”.
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