E eis que, ao quarto volume, a Granta em Língua Portuguesa troca o papel pela película e presta uma bela homenagem à sétima arte, numa viagem a alta velocidade onde há, entre outras coisas, seios que não convencem, zombies – ou zumbis – apaixonados e um fato que permanece imaculado por muito mal que lhe queiram fazer.
Como Pedro Mexia escreve numa das apresentações – a outra cabe a Gustavo Pacheco -, com o “Cinema” (Tinta da China, 2019) operou-se a transição de “uma civilização do verbo para uma civilização da imagem”, com o bónus de a sua linguagem ter criado uma gramática visual, uma imagética sentimental onde, de bom grado, o espectador aceitou, ao entrar no escuro de uma sala, abraçar “uma suspensão voluntária da descrença”.
Mesmo lá à frente é um conto curto e escrito a alta velocidade, onde Colson Whitehead, através de grandes planos, zooms e planos picados, nos recorda todos os hábitos e rituais das salas de cinema, como os hambúrgueres e os refrigerantes ou as saídas furtivas para uma visita rápida ao WC.
À boleia do imaginário dos irmãos Grimm, Veronica Stigger oferece-nos o mais enigmático dos contos – O Filme -, onde há crianças que viajam em motorsde baixa cilindrada, um bebé chorão, aves e toda uma “milícia celestial”.
A partir de “Charulata”, filme de Satyajit Ray que, numa sinopse esmifrada – e em jeito de slogan para uma campanha de vendas – seria qualquer coisa como “o triângulo amoroso, o adultério evitado a tempo mas descoberto tardiamente”, Clara Rowland mostra-nos O mundo dentro de casa, um ensaio brilhante sobre um cinema que ensina a ver o mundo e “um dos mais belos filmes sobre a escrita e sobre a aprendizagem”.
“Abre os olhos e vê”. É esta a mensagem que preside ao conto A bélica, delinquente e sagrada sala de cinema, assinado por Manuel S. Fonseca, onde o autor recorda a sua experiência iniciática em salas de cinema pouco convencionais, onde muitas vezes um lençol servia como material de projecção do mistério e do sombrio ritual, que todos se viam “sentados em cima do mesmo medo, do mesmo desejo, da mesma alegria”.
Letícia Simões regressa à casa de infância servindo-se de uma residência literária, numa difícil coabitação com outras cinco mulheres, todas escritoras, tentando não levar a peito o insulto de que a sua escrita mais parece “uma sessão de terapia” – e, mais do que isso, perceber o mistério do estranho aparecimento de 50 vacas que teve lugar na ilha quando era criança.
Jeremy Sheldon conta-nos tudo sobre A arte invisível do cinema, dando voz aos guionistas e à “poesia oculta” que os move, seja em Arma Mortífera ou em Alien, o Oitavo Passageiro.
Maria do Mar, de João Rosas, surge sob a forma de um guião que poderia servir a uma revisitação ao Verão Azul da nossa infância, e que oferece uma boa máxima para quem anda nessa vida do engate: “Na hora de conquistares uma mulher, cabecinha fresca e parlapié, coração quente e piço em pé!”.
Todd McEwen passa a ferro O fato de Cary Grant, um conto apaixonante e de um humor muito particular sobre a farsa do cinema dos anos 50, onde para ele não parece ser certo quem terá sofrido mais: “se o argumentista, se os actores, se os espectadores”. Fatos destes precisam-se.
Claudia Cardinale é uma revolucionária mexicana, de Duncan Bush, transporta-nos ao western “Os Profissionais”, escrito, produzido e realizado por Richard Brooks, para, numa “paisagem de planaltos, desfiladeiros e ravinas”, nos confidenciar que não é lá grande adepto de seios Cardinais, preferindo antes “o triunfo das costuras circulares, do arame e do elástico”, bem como da “ausência de profundidade” e da “verosimilhança estudada” – aproveitando ainda para criticar os tempos modernos onde se assistiu, segundo ele, ao triunfo do sadismo.
Duas ou três coisas sobre John Cassavetes, de Jonathan Lethem, é provavelmente o melhor conto deste volume, que da filmografia deste mestre escolhe “aquele sobre a família, os amigos, os dois irmãos, os actores, aquele sobre o homem e a mulher”. “Rostos” é o nome do filme, ao redor do qual gira esta espécie de ensaio que descreve a filmografia de Cassavetes como um “acto inacabado de exploração humana”.
A mulher morre, de Aoko Matsuda, mostra-nos todos os “truques de cobra” para os avanços da narrativa no feminino, seja a morte, o casamento, a gravidez ou a violação, num conto onde se descobre os genitais – e um bom motivo para nos rirmos com eles.
Marçal Aquilino é o autor de Na tua relva, ou a Greta Garbo da Rua do Triunfo, um texto que é como “um filme bem movimentado, com muitos momentos engraçados, poucas mas boas cenas de amor, algum sexo e e golpes de sorte que só existem na vida real”.
O filho do coronel traz-nos Roberto Bolaño com sotaque do outro lado do Atlântico, num filme de zumbies que, de tão mau, é realmente bom. Tudo com o dedo mágico de Bolaño, que transforma um aparente texto inócuo num micro-ensaio sobre o amor, a identidade e o sacrifício.
Samir Machado de Machado quer que ouçamos Os roncos do diabo, falando-nos da cultura visual que está imiscuída na leitura para depois pegar num capítulo de “Homens Cordiais”, romance de aventuras ambientado durante a invasão franco-espanhola ao norte de Portugal, para o (re)escrever sob os holofotes do cinemascope.
A terminar temos A Portuguesa, onde a partir de uma breve referência a Lillian Gish e a “O Lírio Quebrado” João Miguel Fernandes Jorge organiza uma peregrinação às ilhas gregas, onde há personagens mitológicas a servirem-nos de guias turísticos.
“Traição”, o quinto número da Granta em Língua Portuguesa, está já disponível para compra física ou através do site da editora. As assinaturas da revista podem ser feitas aqui.
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