“A mulher definitivamente banal passa os dedos pelas pérolas rosa, num gesto ancestral que vira fazer muitas vezes às mulheres da aldeia onde em tempos vivera, só que essas eram contas pretas, acompanhadas por uma ladainha em que a expressão virgem maria aparecia frequentemente. Sempre gostara dessa possibilidade de exorcizar demónios e de pedir bênçãos, embora nunca lha tivessem ensinado.”
É certo e sabido que os livros são feitos para entender, um pouco mais, o mundo. São moedas com dois lados: para os escritores, enredados na criação da história, das personagens e dos cenários; e para os leitores, à procura de significado ou entretenimento. Se um escritor é capaz de dar origem a uma obra de arte, não há como descrever a beleza de um livro criado a quatro mãos. Com uma conhecida relação de amizade, duas escritoras conhecidas dos leitores, Maria Manuel Viana e Patrícia Reis, lançaram um dos melhores livros portugueses dos últimos tempos: “Gramática do Medo” (Dom Quixote, 2016).
As protagonistas desta história, Sara e Mariana, são amigas inseparáveis e partilham tudo desde que se conheceram. Estão ligadas por um curso de teatro e cinema, uma carreira difícil – aproximada ao mundo da publicidade, como actrizes de anúncios de publicidade televisivos –, por amigos em comum, ex-namorados e rotinas complicadas. Cada uma, de classes sociais diferentes, tem sempre algo a apontar para mostrar o quão difícil é a sua vida. As perguntas começam a surgir quando Mariana desaparece, misteriosamente, durante um cruzeiro pelo Mediterrâneo. Escreveu a Sara “uma longa carta, em letra miúda que, muito mais tarde, foi recuperada e entregue à destinatária”, não se esquecendo de assinar como “da tua quase sempre mulher banal”. Numa alternação entre os cenários geográficos, as vozes das protagonistas e a ficção e a realidade, é colocado em reflexão, ao longo do livro, o significado de uma amizade.
Na relação destas duas mulheres, o elemento primordial e unificador é o medo. Tal como Sara descreve, ao tomar a decisão de ir atrás de Mariana, que o que está em causa não são as questões sobre o ser e a sua essência ou o jogo de linguagem, mas sim “a palavra fundamental, medo, medo que tudo cobre, porque ela sabe que no princípio está o medo e no fim”. Maria Manuel Viana e Patrícia Reis vão alternando vozes, contado a vida de cada uma das protagonistas aos poucos e de forma eficaz, acendendo a chama de curiosidade dos leitores. Sem nunca se terem cruzado e conhecido antes de serem apresentadas por um dos professores do curso de Teatro e Cinema há, desde logo, um elemento-chave capaz de prever o encontro entre estas duas mulheres. Como se já estivessem destinadas a encontrarem-se, a serem um refúgio uma da outra nos piores momentos. Sara e Mariana viajam em perfeita sintonia pela mente do leitor, numa escrita construída em afinidade por duas grandes escritoras.
Porém, até numa boa amizade entre duas pessoas podem existir inseguranças, para ambos os lados, a impedirem a partilha de segredos. Se o medo é uma das bases – o ingrediente principal entre estas duas mulheres -, haverá um momento em que tudo pode desabar. Quando decide partir sem ter conversado com Sara, Mariana coloca à prova a amizade que as une. Apesar de em certos momentos viajar na imaginação, quando Sara e Mariana divagam sobre as suas histórias, “Gramática do Medo” é uma obra-prima pela realidade contida nas suas páginas, na insegurança, nos receios, nas ocultações cada vez mais propícias às relações de amizade. Entre pequenas informações reveladas e desabafos, o passado destas protagonistas é o motor para o futuro tão incerto.
“Gramática do Medo” é um dos melhores livros lançados este ano para o mercado português. Ambicioso na sua forma e conteúdo, Maria Manuel Viana e Patrícia Reis construíram nas suas páginas duas mulheres reais, quase banais em determinadas ocasiões mas sempre muito peculiares. Uma amizade que dá luta, um trabalho diário que pode equiparar-se a um laço de sangue. Mas, tal como Tolstoi escreveu – plenamente aplicável à amizade retratada neste livro -, “todas as famílias felizes são parecidas, as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”. Cabe agora ao leitor tirar as suas próprias conclusões.
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