O mais recente livro de Cecelia Ahern, “Garra” (Suma de Letras, 2021), proporciona uma leitura agradável. Porém, contrariamente ao esperado, não oferece “uma colecção ferozmente feminista” de histórias “singulares e poderosas em torno da experiência feminina”.
A obra contém 30 contos, sendo a esmagadora maioria protagonizada por mulheres que encontram, dentro de si, forças para enfrentarem os problemas com que se deparam. Muitas leitoras – e talvez leitores – sentirão empatia, mas o feminismo que aqui se encontra é relativamente ligeiro. Não atinge as raízes da desigualdade estrutural que continua a afectar grande parte da humanidade, nem se debruça sobre alguns temas mais complexos. Não existe violência sexual, prostituição, gravidezes indesejadas ou amores contrariados. As temáticas do aborto e do controlo da natalidade são abordadas indirectamente, num único conto onde um homem é impedido de tomar decisões sobre a sua vida reprodutiva. A existência de violência doméstica é mencionada uma vez, num parágrafo sobre a personagem de uma juíza que ficou marcada pelo caso de uma mulher assassinada pelo marido. Claro que a mudança individual fornece um contributo importante para a mudança global e muitas mulheres podem sentir-se inspiradas pelas heroínas, mas estas figuras femininas limitam-se, na maioria das narrativas, a reagir às situações com que são confrontadas, sem exibirem indícios de uma consciência feminista que as leve a enquadrar as suas batalhas pessoais nessa perspectiva, nem a lutar pela melhoria da condição feminina em geral.
O realismo mágico que marca quase todos os contos é usado de forma criativa, mas seria preferível que a autora tivesse resistido melhor à tentação de explicitar as interpretações pretendidas, as quais chegam a ser simplistas. Por exemplo, a frase “Façam boas escolhas”, com a qual uma das histórias termina, é um bom conselho, mas pressupõe que exista liberdade de escolha e que seja fácil reconhecer as alternativas certas, o que nem sempre acontece.
Algumas narrativas começam de forma promissora, mas o desenlace desilude. Por exemplo, no conto sobre a refugiada, a protagonista sente-se excluída no país de acolhimento, sensação essa que se agrava quando leva os filhos à escola e recebe olhares intimidantes das outras mães. O “empoderamento” ocorre quando ganha asas que lhe permitem simplesmente voar por cima das que estão à sua frente no caminho, não sendo equacionadas iniciativas individuais para transpor barreiras nem aprofundadas questões relativas à identidade cultural.
Não está em causa a sensibilidade social e o poder de observação da autora, que é competente e produz alguns contos óptimos. Contudo, uma parte destes é baseada em ocorrências que nada têm de exclusivamente feminino, como um percalço embaraçoso numa reunião de trabalho, ou um distúrbio da fala que inibe uma pessoa de comunicar. Se os géneros das personagens fossem trocados, o resultado seria igual. Embora não seja criticável escrever sobre vivências que qualquer ser humano pode ter, esperar-se-ia algo diferente de um livro que declara ser dedicado à experiência feminina.
1 Commentário
Achei a proposta do livro excelente, justamente por não ser uma obra feminista, pois mostra aquilo que nos atravessa enquanto seres humanos e enquanto mulheres e como a real mudança e libertação surge quando passamos a olhar para dentro de nós mesmas e nos percebemos como parte da trama social e de nossas próprias vidas. É importante estarmos juntas, termos apoio umas das outras, termos espaços de partilha, falarmos abertamente sobre as dificuldades e isso o livro cumpre muito bem, pois no fundo cada uma de nós precisa perceber a si mesma e agir de acordo com sua própria possibilidade. Não vejo necessidade de pautas feministas para que uma mulher perceba a si mesma. Gostei do livro e da série. Provocativo e inteligente.