Há coisa de poucas semanas, num texto plantado no Observador que a certa altura parecia ter o aroma de um pacote de leite deixado demasiado tempo fora do frigorífico, questionava-se, entre muitas outras coisas, o facto de a Booktailors, esse misto de promotora e organizadora de eventos – e por aí fora -, ter açambarcado para si só perto de uma dúzia dos festivais literários nacionais.
Para quem esteve em Castelo Branco no passado fim-de-semana, não é difícil perceber a razão para tamanho monopólio literário: uma organização supimpa, convidados de nomeada, moderadores que juntam o humor e a ironia a uma boa dose de preparação. Enquanto não surgir concorrência, que tanto se poderá reflectir em fatos fabricados às três pancadas na China ou em peças de alta-costura assinadas pelos mestres da passerelle, os adeptos dos festivais literários poderão usar os fatos cozidos à mão por estes alfaiates, certos de que irão fazer muito boa figura.
Na sua quarta edição, o Fronteira – Festival Literário de Castelo Branco propôs várias conversas sobre os limites que demarcam a poesia da prosa, tentando perceber se a primeira é a escrita dos preguiçosos ou dos genialmente enxutos e, a segunda, o território dos amantes da palha ou dos construtores de cidades literárias feitas com muito papel.
O nosso acompanhamento do Fronteira começou com a Sessão Especial com Manuel Alegre, uma viagem bibliográfica moderada por Tito Couto que incidiu em cinco dos livros escritos pelo poeta e prosador português no decurso de uma longa carreira literária: “O Miúdo Que Pregava Pregos Numa Tábua” (2010), “Praça da Canção” (1965), “Senhora das Tempestades” (1998), “Bairro Ocidental” (2015) e “Uma Outra Memória” (2016).
“Um livro de aprendizagem e iniciação poética”, descreveu Manuel Alegre “O Miúdo Que Pregava Pregos Numa Tábua”, dizendo que a toada, palavra que o tem acompanhado desde sempre como um mantra, lhe chegou da música, dos poemas que se liam em voz alta e de lugares inesperados como as aventuras de Sandokan. Mostrando-se um pouco incomodado com o facto de a Biblioteca de Castelo Branco não ter nas vidraças ou numa das paredes interiores um verso seu, Alegre elogiou Camilo Pessanha e Mário de Sá-Carneiro, declarando Pessoa e Camões como os dois maiores e inultrapassáveis vultos da poesia portuguesa.
Se “Praça da Canção” é um livro escrito à volta da ideia de ir à guerra, por lá morrer e depois voltar, “Senhora das Tempestades” partiu de uma situação-limite vivida por Alegre, que nele viu uma espécie de exorcismo perante um enfarte que quase o levou a conhecer o Senhor lá de cima mais cedo. Um livro que Alegre diz ter sido escrito em “estado poema” por uma mão com vida própria – um estado de inspiração total e quase involuntária que, no mundo dos comuns mortais, equivaleria a qualquer coisa como aviar uma bandeja de tequillas com um panama paper branco de entremeio.
Já “Bairro Ocidental“ girou à volta da ideia de Portugal estar, então, a caminhar a passos largos para se tornar numa “junta de freguesia da Europa ou uma estância de férias para reformados alemães”. Um livro nostálgico, que sonhava com devolver a Portugal o Império perdido. “Uma Outra Memória”, editado em 2016 – o mesmo ano em que Manuel Alegre recebeu o Prémio da Sociedade Portuguesa de Escritores e o Prémio da Associação de Escritores Portugueses -, foi descrito por Alegre como “um livro sobre mim”, feito de afectos e amizades. A ideia que ficou do percurso de Alegre, bem como da sua forma de olhar as fronteiras – talvez ténues – entre a prosa e a poesia, acabou por atravessar toda esta 4ª edição do Fronteira, resumida por Tito Couto a partir da história que Alegre contou de uma visita a Sophia Mello Breyner, em que esta recitou poemas sem o uso das palavras, recorrendo apenas à sua musicalidade: “No fim, o que fica é o ritmo e a melodia”.
O dia de encerramento do Fronteira esteve ao nível de uma maratona literária, com seis sessões que só não foram de enfiada porque também é preciso jantar. Será um Prosador um Poeta Sem Capacidade de Síntese? Foi esta a questão que Tito Couto colocou a Jacinto Lucas Pires e Nuno Camarneiro, onde se poderia também ter brincado ao jogo d`o meu livro é maior que o teu. Afirmando que tem com a poesia uma relação marcadamente fortuita, Camarneiro falou da construção literária “pelo ritmo e pelo som”, defendendo que a poesia – e o formato mais curto – é mais propensa à música do que a prosa. Jacinto Lucas Pires fez questão de começar por ler um conto seu, defendendo a importância da oralidade e o papel que esta deve ter na Literatura. Lançou ainda uma imagem curiosa, que opôs a dança – a poesia – à caminhada – a prosa -, rejeitando no entanto que o conto esteja a meio caminho entre ambas.
Escrita enxuta ou húmida? Foi com esta interrogação em jeito de brincadeira que Pedro Vieira partiu para uma moderação primorosa de uma sessão intitulada Geografias Humanas: do Desnorte à Gramática do Medo, que juntou três amigas de longa data: Inês Pedrosa, Maria Manuel Viana e Patrícia Reis. Referindo-se ao livro de Maria e Patrícia como um lugar em que cada uma tentou entrar no universo criativo da outra, Inês Pedrosa falou também do seu “Desnorte” como um livro que retrata o país e a sociedade contemporânea, tocando as relações familiares, o olhar sobre o corpo, as expectativas perante a vida e a forma como cada um lida tanto com o sucesso como com o fracasso. Maria Manuel Viana disse não serem tanto as palavras a exerceram sobre si o fascínio mas antes a gramática do ser, sendo esta “Gramática do Medo” uma viagem pelas fronteiras e geografias humanas, onde a realidade e a ficção – bem como a prosa de ambas as autoras – se confundem. Patrícia Reis olha para a Literatura como o lugar privilegiado para o combate à solidão, seja ela a do escritor como, também, a do próprio leitor.
Será o poeta um prosador com tiques de preguiça? Bem, a verdade é que Matilde Campilho, uma das metades da mesa moderada por Nuno Costa Santos, cancelou a sua presença à última hora – o motivo esteve longe de ser a preguiça -, deixando José Eduardo Agualusa com a missão – cumprida, diga-se – de entreter o público por si só. Descrito por Nuno Costa Santos como “um estivador literário”, Agualusa partilhou a ideia de que “para escrever um romance é preciso paixão para começar e disciplina para terminar”, afirmando ser um prosador muito disciplinado. Para o escritor angolano, “o poeta pode ser mais indisciplinado que o romancista”, referindo a poesia como o seu grande alimento quando tem de se atirar à ficção. A partir de um conto seu onde uma mulher receitava – leram bem – poemas contra qualquer tipo de maleita, Agualusa referiu-se à poesia como sendo mais útil e eficaz que qualquer livro de auto-ajuda. Fez ainda um grande elogio à rede de bibliotecas públicas portuguesas – algo que em Angola é ainda uma distante utopia – e, quando questionado com a inevitável pergunta sobre a condenação dos activistas angolanos – que considerou um escândalo -, mostrou a sua veia activista: “Portugal tem tido ao longo destes anos uma cobardia em relação à política angolana.”
Condenados ao esquecimento. Sob a moderação de Pedro Vieira – que fez a revelação de ser ele a já lendária Elena Ferrante -, Inês Pedrosa e Nuno Júdice foram convidados a, tal qual umas Mayas literárias, prever que escritor português de agora estará a ser lido daqui a 50 anos. Nuno Júdice preferiu não ferir susceptibilidades ou levantar polémicas e ficou-se por José Saramago, enquanto Inês Pedrosa, qual diplomata, avançou com o nome de Nuno Júdice. Para Nuno Júdice “o tempo é o juiz de quem fica”, e a questão da posteridade, ainda que faça parte dos planos de provavelmente de cada um de nós, não deverá preocupar quem escreve – ou, pelo menos, ser a sua maior obsessão. Porém, a posteridade está desde já garantida a Júdice, que disse ter uma arca que os desempregados editoriais de 2066 poderão abrir, servindo-se de inéditos como quem usa manteiga em pãozinho quente. Para Inês Pedrosa, uma boa hipótese de se evitar o desaparecimento de algumas das maiores figuras literárias portuguesas poderá passar pela edição de uma verdadeira colecção de clássicos, à boa moda da velhinha Sá da Costa. Ambos concordaram que não é saudável impor arquétipos ou exigir comportamentos aos escritores, e de que a mitificação destes não encerra nada mais que a pura artificialidade.
Para a noite ficou reservada uma Missa Maldita, conduzida magistralmente pelo frei Renato Filipe Cardoso. Uma viagem por alguns clássicos e outros poemas mais dados ao território indie, que passaram por grandes superfícies, delírios sexuais, tiques políticos ou andanças facebookianas. É certo que não houve comunhão, mas não faltou um ámen dito com aplausos e água benta para mandar tudo embora na paz do senhor.
Coube a Luís Represas, já com 40 anos de carreira em cima do corpinho, encerrar o Fronteira, numa conversa com Tito Couto que teve algumas músicas pelo meio e que foi dos tempos dos pré-Trovante, onde o cachet era pago em medronho, à ida para Cuba, a terra dos fatos de treino verdes. Para o ano, com ou sem poesia, haverá certamente mais fronteiras a serem atravessadas.
Fotos gentilmente cedidas pela Booktailors.
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