A proposta do Fronteira – Festival Literário de Castelo Branco, cuja 5ª edição decorreu entre 29 de Março e 1 de Abril, foi ao encontro de um remake mergulhado no espírito de “Regresso ao Futuro”: reflectir sobre esta nossa era de extremos e de devoção às redes sociais, tentando antever se conceitos como pós-verdade, liberdade de expressão ou opinião desinformada poderão servir de inspiração ou de ameaça à literatura.
Rui Cardoso Martins – na mesa “Nenhum homem tem o privilégio de entender o futuro, a não ser que esteja preparado para o criar”, a que faltou Kalaf Epalanga -, vê a futurologia como algo reservado aos Zandingas e Maias deste mundo, uma vez que “estamos sempre a tentar adivinhar o que vai ser e depois falhamos“. Ainda assim, e tendo alguém de se chegar à frente na arte da adivinhação, caberá aos artistas a antecipação do futuro pegando nas “cordas do tempo“, tentando imaginar o que está para além de um cenário dantesco onde se assiste ao levantamento dos nacionalismos, ao desmembramento da União Europeia e ao passeio de mão dada entre os Estados Unidos da América e a Rússia. O escritor português esteve recentemente na terra de Putin onde, para além de ter visitado o lugar onde Dostoiévski escreveu “Crime e Castigo”, trouxe como recuerdo um calendário de Putin – “um tipo perigoso, que até sabe citar os clássicos” -, em variações e posições à volta do universo do 007, e uma matrioska com a família de Donald Trump. Considera que a literatura e o romance não devem ser utilizados como arma, olhando com certa admiração para aquele tipo de personagem que não tem projectos para o futuro mas sim para o passado.
Coube a Fernando Pinto do Amaral e a Jaime Rocha – moderados por João Céu e Silva numa mesa intitulada “Qual o papel da ficção no mundo da pós-verdade?” -, mergulhar no pantanoso mundo da pós-verdade, um conceito que ambos colocaram de certa forma em causa. Para Fernando Pinto do Amaral, a pós-verdade poderá será algo fabricado pela acção da classe política, no sentido da manipulação da informação. Para o autor, a ficção deve estar à vontade perante a verdade e os factos, apenas tendo de se preocupar, no máximo, com a verosimilhança. Jaime Rocha apontou as pequenas vivências e não o que se passa no mundo como a grande matéria-prima da escrita, cabendo ao escritor misturar-se com o cidadão e pôr o leitor a questionar-se sobre o mundo em que vive hoje, “uma coisa totalmente nova”. O escritor recuou a Colleridge, referindo que talvez tenha sido este a antever o conceito de pós-verdade chamando-lhe, então, “a suspensão da descrença“. E o que dizer dos enganos? Quererão os leitores ver-se atirados para uma teia de, como diria Mike Leigh, segredos e mentiras? Fernando Pinto do Amaral recorre às “florestas de enganos” de Gil Vicente para responder que sim, dizendo que sem isso a vida seria puro tédio. Mas apenas no campo da ficção, uma vez que tal será dispensável na política e na economia. “Será que as personagens que invento são mentiras que se tornam verdade?” Uma interrogação de Jaime Rocha, que se diz constantemente abordado pelo Sr. Alexandre, vizinho seu da Nazaré, que aparentemente tenta ligar tudo aquilo que encontra na ficção à realidade, desde a mulher que crava cigarros ao ladrão que levou para casa uma boneca insuflável. A terminar, Fernando Pinto do Amaral antecipa o momento – muito próximo – em que os jornalistas vão ter de lutar pela verdade, desempenhando um papel muito mais importante do que aquele reservado e exigido ao escritor.
Álvaro Laborinho Lúcio foi a grande estrela desta edição do Fronteira, numa entrevista de vida conduzida a preceito por Ana Sousa Dias. O título pretendia colocar o em tempos juiz e Ministro da Justiça no papel de réu da literatura: “o Chamador é chamado a depor”.
Ana Sousa Dias recuperou uma das frases que Laborinho Lúcio havia proferido antes de abraçar o mundo da justiça à séria, e que acabou por servir de ponto de partida para a sua ideia de justiça: “O jovem que não transgrida será um adulto mal formado“. Uma frase que, pouco antes de ter assumido funções como Ministro da Justiça, foi esmiuçada pelos jornalistas do Expresso, que descobriram que nos seus tempos de estudante o Ministro se havia dedicado à tradição de pilhar galinhas, ainda que na categoria menos arriscada de receptador – “Cheguei a dormir com 45 galinhas no quarto. Não é problema nenhum, tudo isso já prescreveu“.
Recordando “O Chamador”, o seu primeiro romance que deu origem a uma nova vida – a de escritor -, disse ser o livro de “um jovem escritor com um grande futuro atrás de mim“. Nele pegou no conceito do Livro de Memórias para guardar a vida de 23 pessoas que com ele se cruzaram, ficcionando o que teria acontecido se a vida tivesse sido diferente para elas. Um livro onde “o narrador é um encenador teatral, num diálogo constante com a memória“. Laborinho ligou as raízes da justiça às do Teatro, lugar onde nasceu o princípio do contraditório e a ideia de uma justiça terrena: “Qualquer juiz deveria conhecer Brecht“.
Laborinho Lúcio referiu também que a sua vida esteve sempre mais ligada à justiça do que ao direito, e que deve ser o cidadão e não o juiz a estar no centro da justiça – até porque o contrário seria anti-constitucional. E que, para julgar, o juiz deverá ter uma base cultural forte, pois quem não compreende a vida não compreende o direito. Direito for the masses, cantariam os Depeche Mode se usassem toga.
De entre todas as mesas, a intitulada “O público raramente tem razão” seria aquela que poderia agitar o público, mas tanto Miguel Miranda como Maria João Lopo Carvalho – moderados por Sandy Gageiro – seguiram uma linha onde predominou o humor. Miguel Miranda disse ter como vantagem a sua second life de médico, ainda que tenha a desvantagem de não poder romper o compromisso ético que tem com os seus doentes: “Roubo um pormenor, um tique, mas não posso roubar uma vida“. Maria João Lopo Carvalho declarou o universo infantil como o seu território de eleição, assumindo missão de fazer com que os pequenos leitores leiam e que olhem, por exemplo, para os Lusíadas como o grande monumento literário que é – e não como “a seca do poeta zarolho“.
A fechar o Fronteira, numa sessão que decorreu no Centro de Cultura Contemporânea de Castelo Branco, Lídia Franco e Vítor de Sousa – moderados por Hélder Gomes – viajaram “Do pó do palco à poeira cibernética”, numa conversa onde se aprendeu que o actor nunca se forma, que as doenças e a religião são uma coisa tramada de se brincar e onde se revisitou esse monumento chamado “O Tal Canal”, que, segundo Lídia Franco, foi “a Revolução do 25 de Abril do humor“.
No ano em que o Fronteira aumentou as iniciativas dirigidas às escolas, pelas quais passaram nomes como os de Ana Biscaia, Clara Cunha, José Dias Pires, Joana Bértholo, Miguel-Manso, Patrícia Müller ou Patrícia Portela, ficou no ar a intenção de estender, na próxima edição, o Festival Literário a terras de nuestros hermanos. Hasta la vista baby.
O Deus Me Livro esteve no Fronteira a convite da Booktailors.
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