Em 1969, José V. de Pina Martins falava de um poeta “tão grave, tão sério e tão austero” que, no seu tempo, havia protestado contra a corrupção da corte, e que foi capaz de recusar os “novos rumos para a vida social da comunidade portuguesa, que levariam Portugal à decadência e ao cativeiro”. Esse poeta dá pelo nome de Francisco de Sá de Miranda, alguém cuja poesia se elevava, ainda nas palavras de Pina Martins, “ao nível da predicação profética”.
Sá de Miranda nasceu, ao que se crê, no ano de 1487, durante o reinado de D. João II, e terá estudado Humanidades em Santa Cruz de Coimbra. Mais tarde, já com D. Manuel I, o Venturoso, estudou Direito na Universidade de Lisboa, chegando a leccionar aí na condição de lente substituto. Frequentou a corte e os saraus literários, tecendo amizade com figuras com Bernardino Ribeiro, com quem manteria uma amizade afectuosa.
De acordo com Sérgio Guimarães de Sousa, João Paulo Braga e Luciana Braga, os organizadores de “Francisco de Sá Miranda: Obra Completa” (Porto Editora, 2021), a sua relevância como figura cimeira das letras portuguesas deve-se a uma razão tanto histórica como literária: a sua relação fundacional com a reforma – ou mesmo revolução – literária, introdutora, em termos formais e semântico-pragmáticos, dos “códigos de representação” do dolce stil nuovo em Portugal ao longo do século XVI – ou, se preferirem, o verso decassilábico e as coextensivas formas estróficas inéditas no contexto da lírica portuguesa (o terceto, de Dante, o soneto e a canção, de Petrarca, a oitava rima, de Poliziano, Boccacio e Ariosto, a égloga, de Sanazzaro) e os géneros de matriz greco-latina como a elegia, a ode, a epístola, a sátira, a fábula e a comédia. De forma resumida e elogiosa, foi ele a colocar a poesia portuguesa “a compasso com o horizonte estético oferecido pela mundividência do Humanismo quatrocentista e pela constelação cultural, com as suas coerentes experiências vitais e vivenciais, enunciada pelo Renascimento quinhentista”.
Para David Mourão-Ferreira, há em Sá de Miranda uma faceta moralista, tendo desqualificado a expansão ultramarina e denunciado e repudiado os princípios sócio-morais vigentes. Algo que fez dele, na época, uma espécie de “consciência ética da nação”. Aponta-se, também, a sua linguagem assaz complexa, tornando-o muitas vezes “um escritor de difícil legibilidade”, a que está ligado um estilo “condensado e rebuscado”, sem medo de usar “arcaísmos e provincianismos”. Alguém que cultivava, de forma algo obsessiva, a forma e o trabalho de reescrita.
Esta edição, que reúne a obra completa de Sá de Miranda em capa dura – dividida em Poesia (Poesias à Maneira Antiga e Poesias de Influência Clássica – Sonetos, Éclogas, Canções, Elegias e Cartas) e Teatro -, oferece também um vasto glossário, com centenas de notas de rodapé, devedor do Glossário da Poesia de Sá de Miranda, publicado em 1953 sob a chancela do então Centro de Estudos Filológicos, por Carlota Almeida de Carvalho. Salvo raros casos, não foi modificada a pontuação original do texto mirandino. Um acontecimento literário que resulta de uma parceria com o Centro de Estudos Mirandinos, e que contou com o apoio da Câmara Municipal de Amares.
Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim
Com dor da gente fugia
Antes que esta assi crescesse
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meo espero ou que fim?
Do vão trabalho que sigo
Pois que trago a mim comigo
Tamanho inimigo de mim?
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