No universo de Afonso Cruz, já descobrimos coisas tão fantásticas como um pintor escondido debaixo de um lava-loiças ou, mais recentemente, um poeta que se tornou no mais bonito animal de estimação. Ontem, na mesa do Folio que pretendia discutir o lugar do fantástico na literatura lusófona actual e a criação de lugares imaginários, ficámos a saber que o próximo romance do escritor português andará à volta de um dos projectos surreais da CIA, imaginado, provavelmente, em reuniões onde terá sido consumida uma quantidade apreciável de psicotrópicos. Um projecto, designado por Jazz Ambassadors, que pretendia converter o inimigo à cultura americana através da música, num tempo em que as armas cederiam lugar às notas e acordes musicais.
Moderados por João Paulo Sacadura, Andrea Del Fuego e Afonso Cruz discutiram temas como a importância da infância para o despertar do lado fantástico, se este género literário poderá ser considerado ou não um escape tanto para o escritor como (sobretudo) para o leitor ou quais os ingredientes mágicos que usariam na construção de um novo lugar imaginário.
Andrea Del Fuego, que em Portugal tem publicados os livros “Os Malaquias” – Prémio José Saramago em 2011 – e “As Miniaturas”, falou da escrita como um retorno ao “ver outra vez“, e de uma infância solitária e muito observadora onde se habituou, de modo a responder à diária e supersticiosa pergunta colocada diariamente pela mãe – “O que você sonhou? -, a inventar universos que serviam para alimentar o prazer e a necessidade de conversação – e, também, para suprimir a falta de objectos que lhe permitiriam sonhar, ela que diz ter crescido apenas com dois livros em casa: A Bíblia – apesar de ninguém lá em casa ser religioso – e um livro de receitas, comprado a um desses vendedores porta-a-porta. A autora brasileira falou do realismo mágico como uma realidade escondida e expandida, como aquele instante em que ou aceitamos ou não que o diabo existe, colocando também frente a frente a literatura convencionada e a que no Brasil está “empoderando“, dando como exemplo as sessões de islam poetry. Para Andrea, a escrita e a leitura são vividas como um anti-género: seguir-se-à um livro onde o kung-fu vai fazer das suas.
Já Afonso Cruz teve a sorte de ter, no sótão do avô, um lugar que alternava, consoante a hora do dia, entre a magia e o temor, um espaço onde se encontravam objectos tão diversificados como presas de animais, armas com baioneta ou pedaços de aviões. Ele que, sendo filho único, descobriu nos livros os seus irmãos, reencontrando ainda hoje a família através da literatura. Para o escritor português, o fantástico – ou a literatura no geral – não é de todo um escape, uma vez que a ficção tende a ser mais dura do que a realidade. Afonso falou da cultura como um lugar desempoeirado, sem preconceitos literários e onde deverá haver ligar para o entretenimento e, sobretudo, para a boa disposição, considerando-se um anti-platónico dos sete costados – afinal, quem senão Platão se lembraria de expulsar os poetas da República? Criticando a visão cinzenta que muitos iluminados consideram estar ligada à Cultura, Afonso Cruz lembrou Santo Agostinho, que acabou tardiamente convertido num cristianismo sisudo e conseguiu acabar com o incenso nas igrejas – e esteve a um passo de fazer o mesmo com a música. Em tempos estudante de hebraico, Afonso disse que a palavra original fala não num mas em deuses, e que consegue imaginar Deus e a Sabedoria a criar o mundo de mãos dadas numa paixão avassaladora. O grande Raymond Chandler e o visionário Kurt Vonnegut foram exemplos de uma leitura que vai beber um pouco a todos os universos. Venha de lá esse livro atravessado pelo espírito psicotrópico da CIA.
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