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Folio: foram-se os anéis mas as mãos são de modelo

Por Pedro Miguel Silva · Em 23/10/2017

Há uma expressão popular, algures entre a melancolia e a penúria, que reza mais ou menos assim: “Foram-se os anéis, ficaram os dedos”. No caso do Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos, que este ano viu ser aplicado ao seu orçamento a dieta dos 31 dias, os anéis desapareceram todos num bem regado surf camp, mas a verdade é que há aqui mãos de modelo que se aguentam bem sem ponta de joalharia.

Até ao próximo dia 29 de Outubro, Óbidos será a morada de um festival que articula, de forma superior, a decadência arquitectónica com um design aprumado e uma estética requintada. Um lugar onde a conversa é séria mas sem aborrecimento, fazendo com que a literatura rebente o dique do formalismo e abra as comportas da música, do teatro, da ilustração, das exposições ou do vinho.

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No primeiro fim-de-semana, visitámos três das exposições patentes neste lugar que oferece muito mais que chocolates e presépios: “Desta Canção que Apeteço” (na Livraria Labirinto), uma exposição discográfica do José Afonso – ou, como surge em algumas capas, Dr. José Afonso – onde, para lá das capas de singles e longas-duração, assistimos por décadas a muitas das histórias que envolvem uma das figuras maiores e mais transformadoras da música portuguesa; “O Nascimento de Uma Democracia” (no Auditório Praça da Criatividade), uma colecção de cartazes do 25 de Abril, que mostram como foi o nascimento de uma democracia do ponto de vista da propaganda política; “O Aceitador do Medo” (no Museu Abílio de Mattos e Silva), do moçambicano Gonçalo Mabunda, que trabalhou com armas recuperadas no final do conflito que dividiu a região para criar esculturas e quadros que saltam à vista como quadros em 3D, num olhar artístico que traz à memória Picasso mas também Basquiat.

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Pedro Mexia e Filipe Melo tomaram de emprestado um título literário de Dulce Maria Cardoso, transportando-o para o cinema num muito afirmativo “Tudo o que não vivi, vi”. “Não gostei de livros maus, mas gosto de filmes maus“, disse o autor de “Cinemateca”, dando como exemplo “Verão de 42”, do realizador Robert Mulligan, filme que, redescoberto na idade adulta, terá perdido alguma frescura e (sobretudo) o empolgamento da adolescência. Mexia estabeleceu ainda um paralelo entre o cinema e a poesia para explicar o inexplicável – “Gosto muito do filme mas não faço ideia porquê” -, declarando o cinema como uma guerra psicológica onde gente como Hitchcock se terá sentido em casa.

Filipe Melo criticou a leviandade com que se decide o que é bom e o que é mau, destacando a imensa área curva que se forma para lá dos dois pólos do gosto. Como exemplo apontou “Grounfhog Day”, filme com ar de domingo à tarde que Bill Murray transformou num candidato a Oscar, ou essa banda barulhenta chamada Sex Pistols: não tocavam puto e eram bons.

No que toca a realizadores de coração e formação, Melo escolheu Steven Spielberg, enquanto Mexia se decidiu, à boleia dos diálogos e da forma articulada de falar das personagens, por Éric Rohmer. Quanto ao filme que conseguiu juntar o melhor de tudo, Mexia decidiu-se por “Paris, Texas”, de Wim Wenders – novamente os diálogos -, enquanto Melo, que confessou uma obsessão por musicais, escolheu o eterno “Era Uma Vez na América”.

Sobre os filmes que mais os entusiasmaram em tempos recentes, Pedro Mexia destacou”45 Anos” e “Manchester by the Sea”, enquanto Filipe Melo se referiu a “Victoria”, do alemão Sebastian Schipper, pelo absurdo de ter um único plano-sequência de 134 minutos. Falou-se ainda do lugar que a televisão tem ocupado nos últimos anos – “Os Sopranos” terão sido a pedra de toque que demorou a acender -, lugar onde têm surgido argumentos ao nível da sétima arte como as séries Breaking Bad, The Wire ou o recente filme netflixiano “The Meyerowitz Stories”, que junta Ben Stiller, Dustin Hoffman e Adam Sandler – o melhor deles todos segundo Pedro Mexia, referindo que o puritanismo em relação ao cinema é hoje insustentável. Na retina ficou ainda uma frase de Filipe Melo, que poderá ser usada como um mantra dominical: “Se não vou ao cinema ao domingo à noite, fico com neura durante a semana“.

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Teolinda Gersão e Rodrigo Guedes de Carvalho tiveram como fio condutor “Histórias Revolutas – por dentro da condição humana”, acabando por conferir uma dimensão muito pessoal a uma mesa que começou por abordar a violência contra a mulher. Autor de um tema utilizado como emblema pela APAV, Rodrigo recusou o sentido missionário da escrita – “Não gosto da escrita doutrinária” -, uma ideia partilhada também por Teolinda – “Se quiser escrever contra algo não uso o romance, recorro ao ensaio ou à crónica“.

Teolinda Gersão apontou a indiferença, as relações humanas, a sociedade e a violência como os grandes temas da sua literatura, afirmando que nestes tempos modernos é ainda o papel da família o que está por partilhar entre os casais, e que nesta indefinição sobre que papel cabe a cada um são os mais novos a lidar com essa insegurança: “Estamos num tempo em que as gerações jovens estão orfãs do poder“. Já Rodrigo Guedes de Carvalho criticou os pais que deixam de viver para viverem a vida dos filhos, realçando a necessidade que cada um tem de criar e lutar pela felicidade individual.

Ambos falaram da música como fundamental para a condição humana, e do romance como algo que encerra, em si próprio, uma carga musical tremenda.”O tom decide tudo. Xerazade já contou tudo o que havia para contar, agora o que importa é como se conta“, disse Rodrigo, enquanto Teolinda desenhou uma bela utopia feita de acordes: “Todas as crianças deviam aprender um instrumento“.

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O melhor ficou reservado para um encontro entre os dois lados do Atlântico, numa espécie de combate entre os humoristas Ricardo Araújo Pereira (do lado de cá) e Antonio Prata (do lado de lá), este último apontado como o melhor cronista brasileiro da sua geração. Prova disso são os dois livros editados entre nós pela Tinta da China: “Meio Intelectual, Meio de Esquerda”, que reúne essencialmente crónicas escritas para a Folha de São Paulo, e o recente “Nu, de Botas”, um livro que reúne um conjunto de micro-contos sobre a infância.

Depois de afirmar que Antonio Prata fez batota por ter um pai escritor, Ricardo Araújo Pereira falou dele como alguém dotado de “um olhar milagroso“, capaz de ver nas coisas mundanas um universo paralelo ao olhar dos comuns mortais, chamando-lhe mesmo “uma criança velha“. Começando com “Meio Intelectual, Meio de Esquerda”, definiu-se o “ser meio” como um acto de não fanatismo, um pouco contra as certezas absolutas que Prata diz habitarem o Brasil de hoje: “A esquerda e a direita são pacotes completos do MacDonalds, com batatas fritas e tudo“.

Falou-se da crença imberbe de Prata de que as cuecas serviriam para proteger o homem das etiquetas das calças, do momento em que se descobre que afinal os adultos não estão no controlo, da subversão das pequenas coisas como a alma do humor – foi mais ou menos nesta altura que RAP aproveitou para dizer que “quem lê Os Maias” percebe que dois irmãos se podem divertir muito“. Prata falou da alma que os objectos encerram, sendo a faca uma fascista descarada e o guarda-chuva claramente de esquerda, um transexual que de mordomo passa a bailarina de cancan.

Discutiram-se os primeiros incómodos, da meia que desce ao calcanhar ao ranho que não pára de escorrer, para se terminar em beleza discutindo um dos mais fulcrais temas da humanidade: o cocó. “Com um pouco de cocó todo o assunto do mundo é engraçado“, disse Prata sobre o facto de o seu filho ter recentemente descoberto o humor. E tudo graças ao cocó.

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Durante a tarde, Rui Reininho fez jus ao estatuto de maioral cá do burgo. Para além de ter deixado um aviso à navegação sobre Rui Rio – que, basicamente, impediu que gente como os GNR, Pedro Abrunhosa ou Pedro Burmester tocasse no Porto durante o seu cinzento reinado -, falou em prefácios e prepúcios e, a pedido de um grupo de fãs para cantar um tema seu, decidiu-se por “e quem não salta é lampião”, com direito a coreografia.

A noite (de sábado) fechou com o fado triste e belo de Aldina Duarte, que contou com o espírito e o vozeirão de Carlão para declamar alguns dos versos. O fim de festa decorreu na Casa Tinta da China, onde com a benção de Baco se dançou ao ritmo de Led Zeppelin, Faith No More, David Bowie ou Joy Division. O Folio continua até 29 de Outubro, quanto a nós regressamos à Folia no dia 27.

 

 

Galeria Fotográfica (fotos de Luísa Velez)

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Pedro Miguel Silva

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