No filme “Almost Famous”, que conta a rebelião de um adolescente com uma educação moralista que vê na música a sua raison d’être, há uma cena mítica no que toca ao exercício da crítica e à sua contaminação pela amizade. Aquele momento em que, dias e dias após consecutivas baldas às aulas, desculpas mal dadas à mãe e uma entrevista que teima em não ser feita, o puto se dirige ao guitarrista e estrela da banda e lhe diz, de forma inflamada, que não é nenhuma mascote, não é de todo um tipo fixe, e que o devem olhar seriamente como o crítico, o inimigo – o semanário musical NME escolheu muito bem o nome.
A contaminação da crítica literária pelas relações pessoais foi um dos tópicos que esteve em cima da mesa, moderada por José Mário Silva, na qual se sentaram João Pedro George e Pedro Mexia, como representantes nacionais, e Miguel Sanches Neto, vestindo as cores do país irmão do outro lado do Atlântico. O tema, esse, era – nas palavras de José Mário Silva – de todos os do Folio aquele que anunciava com mais furor um apocalipse literário: o colapso da crítica literária, e do jornalismo cultural, na Brasil e em Portugal. Felizmente para o público, os intervenientes mostraram ter uma visão muito diferente da ideia de crítica literária, do perfil associado – ou exigido – ao crítico e do papel que os meios digitais têm tido na tarefa de suprir o desaparecimento do espaço dedicado pelos jornais à literatura.
Pedro Mexia, um dos críticos literários que escreve com uma regularidade assinalável na imprensa escrita e na blogosfera, afirmou que o colapso é factual, da ordem da evidência, e que acabou com a necessidade que o país em tempos parece ter tido da figura do mandarim cultural – Eduardo Prado Coelho terá sido, provavelmente, o seu último representante. Algo do qual resultou também do boom tecnológico, reflectido em ferramentas como o e-book e a facilidade no acesso aos livros, reflexos da democratização da opinião. O problema do colapso, na parte que toca a Mexia, foca-se na supressão dos caracteres a que todos os críticos tradicionais – os do papel, pelo menos – estão sujeitos e, uma vez que nem todos somos Borges – bastará ler os prefácios do mestre na colecção de literatura fantástico que vinha sendo reeditada pela Presença -, torna-se complicado escrever uma crítica de olhos fechados dentro de uma cabine telefónica.
João Pedro George, baptizado em tempos – e curiosamente pelo moderador – como uma espécie de bulldozer da crítica literária, recusou a opinião de que assistimos a um colapso da crítica literária. Há, antes, um cenário que aponta à sua descentralização. Além de considerar não ser algo da ordem do factual, não é propriamente uma novidade no que diz respeito à era cultural moderna, que já lançou catástrofes como a morte do autor, o fim da arte ou o enterro da história: “A crítica tende a representar-se a si própria em crise, numa eutanásia permanente“, movida pela “volúpia do desastre“. Para George o caso é muito simples: será muito mais fácil imaginar o fim da espécie humana do que o sistema capitalista, pelo que em colapso estarão as críticas nos jornais, bem como as hierarquias sociais que foram sendo semeadas pelos iluminados culturais nas últimas décadas que decidiram fazer uma divisão entre alta e baixa cultura. Afinal, não seremos todos nós críticos?
Quanto a Miguel Sanches Neto, que se apresentou com a dupla faceta de crítico/escritor, consegue ver no Brasil um apocalipse da crítica literária ainda maior no Brasil, lugar onde deixou de se possível aos escritores buscarem um lugar de sobrevivência monetária. Tal como George, Sanches Neto foi buscar Foucault que, de certa forma, foi visionário quando anteviu que chegaria o tempo em que estaríamos envolvidos num murmúrio, com muitas pessoas falando ao mesmo tempo. Esse tempo, para o autor brasileiro, é o agora. Seguiu-se um elogio à blogosfera, “o grande espaço de sustentação crítica no Brasil“, bem como os encontros literários, que considera serem uma extensão física da própria Internet. Seguiu-se a opinião de que o papel da crítica é o de apontar caminhos, e de certa forma actuar como pedagogia, algo que sobretudo em Georges foi recebido de forma algo anedótica: o papel da crítica é, acima de tudo, o de provocar, de criar uma catarse no leitor, de ser ele própria um exercício literário.
O crítico que nunca leu ou escreveu sobre um livro do qual não gostou que atire a primeira pedra. Este suspiro, que poderia estar escrito num azulejo e pendurado em muito bom quarto dos que se dedicam à crítica literária, foi suprimido por Mexia, que disse ter perdido a paciência para tal. Quanto à blogosfera e apesar de registar a proliferação de opiniões, mostrou-se algo reticente, não considerando que esta seja sólida e autónoma no que diz respeito à crítica literária.
Sempre directo ao assunto, João Pedro George falou da crítica nos jornais como uma derivação da carneirada, dando um exemplo pessoal sobre a forma como estes estão sujeitos a pressões e vínculos editoriais. Um tema que Sanches Neto aproveitou para falar da chatice que é, para um crítico, ter amigos escritores, e ter de escrever sobre os seus livros. Neto considera que a crítica é sem dúvida alguma “o território das inimizades“, sendo uma questão de sanidade mental – e protecção física – para o crítico buscar o isolamento.
Questionados sobre a ideia de uma utopia literária para os próximos vinte anos – Neto não teve tempo para desenhar a sua -, Mexia sonhou com um tempo em que os críticos vivessem sem restrições de espaço, e que pudessem decidir se escreveriam um parágrafo ou uma página sobre o livro sem terem os designers à perna. Uma falta de espaço que, quase sempre, tem impedido Mexia de fazer aquilo que mais gosta na crítica literária: fazer uso de citações.
Rejeitando a ideia de que a crítica exerce ou terá de exercer qualquer pedagogia ou apontar caminhos, João Pedro George atirou com um dos seus mantras: “Procuro aproximar-me sabendo que fico sempre a meio caminho.” Para ele, essa utopia seria sonhar com uma crítica corajosa e opinativa, que não tenha medo de errar mas seja, acima de tudo, uma posição pessoal sem medo de ferir susceptibilidades. O emos que dizer: amigos amigos, críticas literárias à parte.
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