Chegou a bom fim, no dia 20 de Outubro, a 9ª edição do Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos, dedicada ao tema da Inquietação. E, numa altura em que os festivais literários vão crescendo no país como cogumelos, é em Óbidos que cresce o cogumelo mágico, capaz de provocar as mais benignas alucinações literárias.
Entre autores mais ou menos conhecidos, eventos de massas e outros remetidos ao conforto do nicho, o Folio permanece como um lugar da liberdade literária, sem necessidade – até ver – de montar o púlpito da idolatração. É certo que falta dar espaço a géneros literários como a fantasia, a ficção científica ou o terror, mas há mais do que tempo para corrigir a falta. A começar, talvez, já no próximo ano. A 10ª edição do Folio acontece entre 9 e 19 de Outubro, e além das datas também já há tema: Fronteiras.
Fica, em estilo de postais ilustrados, um olhar sobre o último e inquieto fim-de-semana Foliano. Para o ano há mais. Até lá, boas leituras.
Quem tem medo, escreve um livro
Ambas fugiram, cada uma à sua maneira, do Medo. Mónica Ojeda, autora do recomendadíssimo “Mandíbula”, deixou para trás um país mergulhado na violência; quanto a Madalena Sá Fernandes, escalpelizou o medo da violência doméstica em “Leme” (ler crítica), abandonando o que se tinha habituado a chamar de lar. Numa conversa moderada por Isabel Lucas, discutiu-se as várias cambiantes do medo, a sua dupla capacidade de mobilizar ou paralisar, a relação que se estabelece com o desejo e a potencialidade transformadora que encerra.
Madalena Sá Fernandes, que regressou por diversas vezes a Cortázar, disse ter vivido a ansiedade da autoficção, tendo trabalhado – em “Leme” – o medo como um parceiro. E fê-lo “através da desistência de outros temas, dando a mão ao monstro mais interior. Senti que foi algo que precisava de fazer, quase terapêutico. Não uma cura, mais uma sutura colocada sobre a ferida. Escrever é uma constante tentativa de cura“.
Em “Mandíbula”, livro que reinvindica os lugares monstruosos como lugares de criação, assistimos à curiosidade pela fisicalidade, pela experiência da dor, numa relação estreita entre medo e desejo entre mulheres, explorando no limite os desejos do corpo feminino. “Interessa-me pensar como vivemos no quotidiano do medo, como atravessamos os terrores quotidianos – o abismo existencial. O confronto com esse abismo, com esse vazio, poder ser algo doce ou amargo. Nem sempre há palavras para o medo“.
Questionada sobre se há um novo género na literatura sul-americana feminina, Ojeda falou no triunfo do gótico, no sentido de se ter aprendido a “ler a historicidade do próprio território, da geografia e dos corpos. Buscar, na própria geopolítica, como se conta o medo, quais são as lendas rurais. Criar uma nova escrita do medo, tocando os tabus sociais. Trata-se de um acto muito político, onde há violências terríveis – femicídio, racismo. Aquilo que não se podia nomear é agora nomeado. Falam desta literatura como violenta, mas violenta é a realidade. Não há nada mais amável do que um livro. Este pode ser fechado, a realidade não“.
Uma imagem mente melhor que mil palavras
Será possível fixar a memória? Foi à volta desta questão, com o seu quinhão de filosófico, que a Casa Tinta da China recebeu Daniel Blaufuks, artífice da imagem e artista global, e Marta Hugon, que recentemente se estreou na literatura com a edição da colectânea de contos “Souvenir”.
Daniel Blaufuks, que mantém com a memória uma obsessão – “não no sentido clínico“, esclareceu -, falou desta como uma curiosidade quase inata. “A memória atravessa-nos a todos. Somos feitos de memórias que já nos antecedem“. Para o futuro, marcadamente digital, prevê que a fotografia – ou a literatura – pode deixar de desempenhar um papel decisivo na fixação do que fica para trás. “No futuro, a fotografia não se vai debater com a memória como aconteceu anteriormente. A partir do momento em que não há um original, tudo pode ser falsificado“. Quanto à expressão de uma fotografia valer mais do que mil palavras, Blaufuks chama-lhe uma anedota: “As pessoas vão cada vezes menos acreditar nas imagens, e isso até é bom. Dizer que uma imagem vale mais do que mil palavras é uma treta. A fotografia sempre foi uma mentira. A fotografia é sempre um ponto de vista do fotógrafo, e há sempre uma agenda. É um erro fundamental nunca pensarmos em quem tirou a fotografia. Vemos nela o que queremos ver. Toda a história é uma mentira, contada pelo lado dos vencedores. Há sempre uma escolha. Quem controla os arquivos, controla o poder de contar a história“. Ainda assim, não desiste de ler o mundo através de uma lente fotográfica. “Também gostamos de nos entreter com coisas inúteis“.
Para “Souvenir”, Marta Hugon partiu de memórias, próprias e roubadas ao alheio, ao encontro de leituras de uma vida. “Os livros que mais me comoveram estiveram ligados à memoria e à perda. O que escolhemos lembrar, esquecer, e o que isso representa para a nossa identidade. Só percebi que a memória seria o fio condutor de “Souvenir” depois de ter escrito quatro contos. Há muito de trauma neste livro, mas também um lado ficcional da memória. Houve um processo de mentira da ficção. Dediquei vinte anos à música, mas o processo da escrita solitária é um virar do avesso. Não o vejo outra forma de o fazer senão através da memória e da escrita. É um trabalho mentiroso no melhor sentido“.
A conversa animou – estendendo-se também às questões do público – quando se falou de memórias privadas enquanto registo histórico. “As memórias privadas, a memória pública, não têm grande importância no mundo“, avançou Blaufuks, afirmação refutada por Marta Hugon, que deu como exemplo as memórias de Amos Oz, “uma comunicação que atravessa os tempos através de um relato pessoal e autobiográfico, da sua forma de fixar a memória, que permite olhar um facto histórico que afectou milhares de pessoas“. O que nos recordou uma entrevista feita a Juan Gabriel Vázquez em 2017, onde falou de uma espécie de declaração de princípios do que pode ser a literatura: “fazer o que nem o jornalismo ou a história podem. Ir a lugares onde estes não podem ir e contar a sua história. Interessam-me os livros que vão a lugares apenas alcançáveis com o poder da ficção, aquilo a que chamamos imaginação moral“.
emmy Curl, uma sereia com asas transparentes
Depois de alguns anos a cantar em inglês, emmy Curl abraçou definitivamente a portugalidade – depois de um 50/50 “OPorto”, disco de 2019 – e surpreendeu meio mundo com “Pastoral”, disco que pega na tradição e na música mais a norte para a conduzir ao território dos elfos e de outras criaturas que só na fantasia existem. No concerto do Folio, emmy Curl surgiu qual personagem de um romance de Marion Zimmer Bradley, envolta numas asas transparentes que criavam ondulação, tendo em pano de fundo um cenário que ia mudando como numa sessão de slides – de autoria própria -, e que nos oferecia qualquer coisa como uma história da botânica submarina do mundo dos elfos. Depois de citar nomes como José Afonso, Né Ladeiras ou Fausto como influências maiores, revelou que “Pastoral” nasceu de uma pesquisa profunda, e que se encontra em trânsito do Funchal para o Porto, cidade que terá uma extensão do colectivo de arte internacional Escola Normal, do qual é co-fundadora.
Num concerto solitário, onde alternou entre loops, batidas pré-gravadas e malhas à guitarra, emmy Curl dedicou “Poetas à Solta” a Agostinho da Silva – “uma inspiração” -, recordou a maternidade e um parto complicado durante a pandemia – “o medo bloqueou o amor e a empatia”, disse no arranque de “Vem até mim” -, cantou as palavras do seu avô em “Incerteza”, arrancou uma cover do clássico “Maio Maduro Maio”, organizou uma manifestação que foi desembocar ao Lux – com uma esmerada interpretação de “Mudança” -, convidou Giacometti para a festa e o pastoreio em “Balabala”, gravou um loop com o público para disparar em “Botar água na vinha” – “uma ode ao básico” – ou entrou em modo Dj antes de uma passagem para “Senhora do Almortão”, isto antes de um grand finale com “Mirandum”. Esta sereia sabe voar.
O sonho americano que escapou por um triz à fogueira
Um filme sobre o sonho americano, ou como Orson Wells conseguiu o feito quase épico de levar ao grande ecrã “Citizen Kane”, a história – não vendida como tal na altura – de Charles Foster Kane, o magnata da imprensa que basicamente a todos tinha na mão, alguém capaz de dar cabo de uma vida com um simples telefonema. Frederico Corado, filho de Lauro António, apresentou a publicação do argumento de “Citizen Kane” que chegou às livrarias com o selo da Poets & Dragons incluindo um texto e notas do seu pai. Corado que sabe e bem contar uma história, brindando o público da Livraria Artes e Letras com uma palestra sobre muitas das peripécias que envolveram este filme: a relação despótica com Mankiewicz, que se viu no risco de ser riscado da ficha técnica; as tentativas de Foster Kane de comprar a película, tão só para a queimar; ou os rasgos de génio e loucura de Wells, que queria filmar um plano tão, tão baixo que rebentou o chão para colocar uma câmara a filmar abaixo do nível do solo. Para quem gosta de argumentos, uma boa oportunidade de levar para casa este “Citizen Kane”. Só é pena não ter como extra os comentários de Frederico Corado.
Com desilusões destas estaremos sempre em festa
Era, ainda antes de conhecer a luz da edição, um dos candidatos a melhor título de 2024: “Mais Uma Desilusão”, a estreia de Valério Romão no mundo da poesia, naquele que parece ser um poema contínuo sobre os anos 1980 – e de como sobrevivemos desde então. Num muito inspirado texto de apresentação, Catarina Santiago Costa pôs as coisas desta forma: “O Valério escalpelizou a frustração dos que ficaram a ver navios. Os que caminharam de desilusão em desilusão, em contagem decrescente até ao verso final. (…) Estas 61 páginas épicas são uma epopeia. (…) O Valério consegue condensar uma vida, aquela que viveu até hoje, nestas páginas. Desengane-se portanto quem tome “mais uma desilusão” por um poema longo. Ele é muito curto”. Valério Romão leu um sumarento fragmento e, quinze minutos depois, já dava autógrafos com uma caneta na mão direita enquanto na esquerda segurava uma cerveja. Poesia rock and roll, pois claro.
Um jornalista, um humorista e um padre entram num bar e…
Um jornalista, um humorista e um padre entram num bar e… Podia começar assim este postal ilustrado da sessão que juntou João Francisco Gomes, Ricardo Araújo Pereira (RAP) e o Padre João Bastos na Casa Tinta da China. Tudo para lançar uma questão a que muito bom filósofo ofereceria um milhão de euros para ter a resposta de volta: “O que é que eu estou aqui a fazer?”. Questão sobre a qual João Francisco Gomes esteve à conversa com Ricardo Araújo Pereira numa série de três entrevistas, e que resultou num livro com o mesmo nome, no qual vieram à baila assuntos como Deus, a fé, o humor e a morte – e que contou, num dos capítulos, com a participação do Padre João Bastos.
“O Ricardo tem um pensamento teológico muito sofisticado”, começa por dizer o jornalista João Francisco Gomes, antes de RAP nos contar a história da origem desta questão existencial, que terá surgido numa aula de religião e moral quando tinha 14 anos, numa sessão de perguntas anónimas atiradas para dentro de um chapéu. Falando de aulas de religião e moral, o Padre João Bastos, que mostrou ter veia para stand up comediant, disse mostrar, nas suas aulas, os Monthy Python com o seu “The Meaning of Life”, brincando com o estado actual do clero português, que deve estar pelos arames uma vez que é ele que está ali em sua representação. Seguiu-se uma conversa com muito humor, troca de argumentos e alguma comoção, onde estiveram bem vincadas duas formas distintas de olhar o mundo. A sessão de perguntas do público ainda ameaçou pegar fogo, com a questão da fé e do dogma a vir à baila, mas as fintas do Padre João Bastos foram suficientes para despitar agnósticos e ateus mais empolgados. Amén.
O Cartoon é uma arma (mesmo que fora das páginas dos jornais)
Quem visitou a Casa Tinta da China nos dias do Folio, notou certamente os Retratos em Revolução de João Abel Manta, uma pequena mostra do trabalho de ilustração/cartoon deste inquieto artista português que esbateu as fronteiras entre cartoon e ilustração. Ele que, segundo Bárbara Bulhosa, é uma espécie de mestre para André Carrilho e João Fazenda, dupla que, na companhia de Pedro Piedade Marques – responsável pelo texto da exposição e provavelmente o maior especialista conhecido da obra de Manta -, esteve à conversa sobre Cartoon Político. Dois autores que, neste campo, acabam de fazer chegar às livrarias – ou estão lá muito perto – dois livros: André Carrilho com “Linha, Ponto e Vírgula”, na (sua) editora Dilúvio, uma antologia de caricaturas de escritores de todo o mundo seleccionadas de trabalhos realizados, ao longo de mais de vinte anos, para publicações nacionais e estrangeiras; João Fazenda com o livro de caricaturas que fez para as Crónicas da Boca do Inferno de Ricardo Araújo Pereira, e que ganharão vida própria num livro com saída prevista para Novembro.
André Carrilho partilhou as suas reticências quanto à publicação impressa de cartoons, não tanto por uma potencial censura mas por uma questão de sobrevivência. Algo que tem sabido contornar pela experiência nas redes sociais. “O modelo de negócio tem de passar cada vez menos pela imprensa. É o que tenho feito. O cartoon pode sobreviver fora dos jornais. Vamos ver se tenho razão“. E quanto ao caricaturado, quem prefere passar para o papel? “O político tenta esconder a sua vida complexa. Sinto uma proximidade maior com escritores. Cria-se uma empatia que leva à vontade de desenhar“.
Joao Fazenda recordou o difícil início de ilustrar, com as “Crónicas da Boca do Inferno”, um texto já de si provocatório, sobretudo quando não sabia sobre o que iria ter de desenhar – falou em “blind date“. Talvez por isso os desenhos tenham ganho uma vida própria fora do texto, nascendo não do texto mas de uma ideia sobre ele.
Foi João Fazenda a trazer o tema da auto-censura para a conversa, aludindo ao seu trabalho para a New Yorker, algo confirmado por André Carrilho, que falou de uma cultura bem diferente da realidade portuguesa, em questões como o acesso às armas, que condiciona a abordagem na criação. Porém, no que diz respeito à defesa, em Portugal – ao contrário dos Estados Unidos – são os cartoonistas – e não as publicações para as quais trabalham – a defender-se em tribunal. O que não tem acontecido com muita frequência desde o 25 de Abril, pela razão de a ideia de censura estar ainda muito vincada. Sobre este tema, Pedro Piedade Marques recordou a perseguição dos governos nos anos 1970, lembrou Augusto Cid e referiu o cartoon de António, que desenhou o Papa João Paulo II com um preservativo no nariz e o mundo quase lhe caiu em cima. Ou João Abel Manta, que também passou pelo tribunal quase na mesma atura que as Três Marias. Ambos os autores mostraram-se preocupados com o facto de, cada vez mais, os desenhos serem examinados e colocados num contexto, o que obriga, num gesto de defesa, a torná-los quase literais, o que leva a um brutal empobrecimento. Resistir – e cartoonar – é preciso.
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Fotos: Luísa Velez (excepto as assinaladas)
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