Não se começa a construir uma casa pelo telhado. Esta frase, que poderia ser estampada em T-Shirts para servirem de prenda a arquitectos praticantes, é uma daquelas verdades universais, que fala do saltar de etapas como um passo quase certo para desencantar um sarilho dos grandes. Um pensamento que esteve por detrás da concepção de “Uma casa é uma montanha é um chapéu”, um livro ilustrado táctil para crianças dos 6 aos 10 anos que resultou de uma joint venture que deve ter dado muita dor de cabeça – e uma satisfação de todo o tamanho, depois de se ter nas mãos o incrível resultado final.
Com cores vivas, letras grandes, alto relevo, texto em Braille e um formato inclusivo, este é um livro verdadeiramente acessível, capaz de transmitir a todos os públicos – crianças cegas ou com baixa visão e crianças sem necessidades especiais de leitura – a magia da arquitectura, através da exploração de uma casa, da sua relação com o mundo e do muito que consegue esconder lá dentro. Um livro para ver, ler e sentir, que esteve em destaque na edição deste ano no Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos, numa conversa que aconteceu na Casa José Saramago e onde participaram Filipa Tomaz e Letícia do Carmo, autoras do texto (ambas ligadas à Trienal de Arquitectura de Lisboa); Yara Kono, responsável pelas ilustrações e o design gráfico (da editora Planeta Tangerina); e Fátima Alves, que tratou da acessibilidade e da concepção táctil (da empresa de consultoria Locus Acesso).
Filipa Tomaz falou do livro como mais um passo dado pela Trienal da Arquitectura rumo à acessibilidade, depois de, em 2017, a Open House Lisboa ter introduzido as visitas acessíveis. Neste livro, comunica-se a arquitectura a um público infantil através de uma forma diferente de entender o espaço, mostrando-se “a unidade que a arquitectura trabalha” através de uma casa, “do que a protege, a rodeia, os elementos que a compõem. O conjunto de casas, a imaginação que começa desde muito cedo. Um pouco o trabalho de colaboração associado à arquitectura, que foi também um pouco o modelo para este livro”.
“O objectivo era que do princípio ao fim nunca fosse um produto acabado. Um livro feito em conjunto, resultado de vários consensos e emoções. Uma simbiose em que nem sempre acreditei. Até porque não é fácil entender um artista”, acrescentou Fátima Alves, arrancando algumas gargalhadas ao público presente. Antes disso, recordou a primeira vez em que teve nas mãos um livro acessível, olhando-o não como uma edição especial mas como algo mais completo.
“Tal como a casas, também a pessoa que nela habita se relaciona”, partilhou Letícia do Carmo, falando das questões sociais e técnicas que surgiram durante a escrita. “Como vamos fazer um livro de arquitectura para criancas da escola primária com um entendimento acessível, e que torne mais fácil a mediação?”. Na escrita, foram tidos em conta vários elementos, que seriam depois transformados em relevo – sobretudo a questão da escala, tanto das personagens como da própria casa. Para a personagem principal – Lina -, por exemplo, existe uma página em que surge em diferentes tamanhos, para que se identifiquem os elementos comuns independentemente do tamanho com que surja depois na página. Para a casa, optou-se pelo telhado em triângulo, imagem que desde a infância nos habituámos a usar sempre que desenhamos uma casa, havendo também uma página onde este surge, qual montanha, abençoado por gotas de chuva – que também apendemos a desenhar através de riscos.
Sobre o andamento literário, Letícia diz ter “alguma cadência dos haikus japoneses. Há rima, um certo ritmo que vai mantendo”. Realçou também a aprendizagem mútua que o livro põe à disposição pela leitura dupla – caligráfica e em braille -, permitindo uma leitura – individual e colectiva – nos dois sentidos.
De forma a testarem o livro ao longo do árduo processo criativo e de produção, contaram com diversos testes, realizados com a Escola Romeu Correia, no Feijó – escola de referência para cegos -, acompanhados por crianças com o apoio da Associação Bengala Mágica, e também com adultos com experiência na leitura táctil do Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos. Isto a partir de placas de gravação em diferentes materiais, que foram mudando até se encontrar o material certo. Um agradecimento especial foi deixado à Gráfica Maiadouro, numa simbiose que permitiu que este livro fosse produzido em Portugal.
Yara Kono, uma das mais cativantes ilustradoras nacionais, falou de “uma grande e emotiva experiência”, recordando o dia em que foram realizados os primeiros testes. Destacou a importância da educação visual e da representação dos símbolos, neste convite feito à Planeta Tangerina pela Trienal de Arquitectura que obrigou a um “trabalho de ajuda e afinações constantes, a muitas mãos e com muita dedicação”. Um livro muito difícil de produzir, por ser “caro, ambicioso e difícil”, e que implicou ser desenhado a duas dimensões, primeiro, e depois transformado em vectores, para que desse origem à passagem para o relevo.
Yara partilhou com o público os primeiros esboços, os vários desenhos refeitos após conversas comuns, num projecto que foi desde o início pensado em todas as frentes. “Tive de aprender muita coisa, de rever e adaptar. Nada foi feito ao acaso. Mas é incrível quando vemos que o projecto deu certo. É tempo de degustarmos o livro”. Uma porta que fica agora entreaberta ao mercado editorial português, esperando-se que outras editoras possam fazer chegar às livrarias objectos tão preciosos – e acessíveis – quanto este lar doce livro.
(Imagens retiradas do site Planeta Tangerina)
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Fotos: Luísa Velez
7 Commentários
Um livro que é uma descoberta. E tão bonito! Muitos parabéns às autoras!
Que maravilha de projecto hoje realizado em livro inclusivo, belo, mágico, tornado real para tantas crianças. Muitos parabéns a todos os que nele participaram.
Arrojada e maravilhosa iniciativa, que certamente irá produzir abundantes e preciosos frutos! Grande exemplo de coragem e tenacidade… Estão de parabéns todos os envolvidos!
Parabéns a todos os que se empenharam na realização desta preciosa obra de fantástico alcance !!
Livro? Objecto de arte? Inovação explosiva, que atrai mais ainda à medida que a vamos experimentando.
A sua divulgação trará novos impulsos.
Parabéns à equipa.
Muitos Parabéns. É um exemplo a seguir.
Este é um livro INTEIRO, porque está realmente acessível à leitura e compreensão de todos. Muitos parabéns à equipa que o tornou possível.