Everyday is like Sunday
Everyday is silent and grey
Imaginem um episódio de “Bookmark’d With Sara & Des”, o podcast sobre livros da dupla Sara Carrolli e Destiny Sidwell, transmitido em directo do Folio. Pois bem, não aconteceu mas esteve lá perto, com uma conversa sobre o Quotidiano – que Morrissey tão bem cantou em “Everyday is like Sunday” (ouvir aqui) – que decorreu, à velocidade da luz gramatical, entre Beatriz Serrano e Danya Kukafka, com a moderação a cargo de Mariana Oliveira. Duas autoras que se estrearam, este ano, nas livrarias nacionais. Beatriz Serrano com “O Desencanto”, que acredita que “a vida tem de ser mais do que preparar o tupperware do dia seguinte, trabalhar, ir ao supermercado e ver uma série”. Danya Kukafka com “Notas Sobre Uma Execução”, um falso thriller que acompanha as últimas 12 horas de um condenado à morte, centrando a narrativa na história de três mulheres – a mãe, a cunhada e a detective que o prendeu.
Em dias dados a uma agitação à escala global, as inquietações maiores das autoras apontam para lugares diferentes. “O que me inquieta mais são os homens. A forma como a violência se tornou sensacionalizada. O amor pelo true crime na sociedade americana. Temas que me permitem colocar perguntas a que os media não respondem”, avançou a norte-americana, enquanto Beatriz Serrano disse estar “preocupada com o futuro, pela primeira vez na vida”, referindo-se ao problema das rendas que tanto afecta Portugal como Espanha no momento presente.
Mariana Oliveira vira agulhas para a palavra que dá título à conversa, perguntando se o quotidiano se relaciona, de alguma forma, com o processo da escrita. Para Danya, “a ficção vive dentro da vida quotidiana. A minha vida não tem nada a ver com assassinos em série, não se preocupem, nem tenho sequer um passado traumático. Não lhes chamaria demónios, são apenas questões que coloco”. Beatriz fala de um livro que mergulha numa “realidade chata, que é ter de trabalhar. Tenho a mesma sensação com o trabalho que tenho com as idas ao supermercado. Não sei se o meu livro ajuda a sair da realidade ou a pôr o dedo na ferida”, diz, trocando momentaneamente o inglês pelo castelhano. Um livro que, segundo a autora nascida em Madrid, começou a germinar no seu universo relacional, onde todos falavam de trabalho – e não da forma mais animadora. Algo que a fez colocar duas questões: “Quando nos tornámos tão chatos? E quando nos tornámos tão desesperados, ao ponto de julgarmos não ter escolha? Criei então uma atmosfera falsa e materialista, perfeita para ser eu sem ser eu. Um pouco ao encontro da teoria de um sociólogo americano, que diz que a partir do momento em que fechamos a porta de casa começamos a actuar, a fingir”.
“Notas Sobre Uma Execução” tem lugar no Texas, estado onde a pena capital é ainda uma realidade e as execuções acontecem. “Li muitos blogues de pessoas das prisões, e acabei por contratar um investigador”, diz Danya. O que lhe permitiu ter o testemunho de guardas prisionais, conhecer as rotinas instituídas – como o pequeno-almoço ser servido frio, por vezes com formigas, às três da manhã –, os horários das actividades ou deitar as mãos à planta do edifício, ajudando-a a avançar na construção espacial deste “lugar negro”. Ansel Packer, o serial killer que imaginou, partiu de “Ted Bundy e de muitos outros, espremidos num só”.
A cultura da auto-ajuda, reflectida de forma algo assustadora em sessões de team building ou frases motivacionais impressas em canecas de café, foi também trazida a lume. “Não sou contra o pensamento positivo, mas por vezes é como uma pandemia. Os livros de auto-ajuda foram uma resposta capitalista e generalista a um problema geral. Resultou um pouco da auto-culpabilização, sobretudo nos paises católicos, que acabou por criar uma indústria da auto-ajuda”. Opinião partilhada por Danya, que brincou com a tão em voga expressão “I have such good boundaries”, uma obsessão moderna com os círculos invisíveis relacionais.
Terá essa doença laboral a ver com o atravessamento de uma crise, ou é algo que está já incrustado no ADN individual à escala planetária? “Deixámos de acreditar na ideia do esforço como recompensa certa, num afastamento entre o trabalho e a identidade”, avançou Serrano, enquanto Danya destacou “a identidade do trabalho que nasce desde que somos crianças, e a toxicidade de isso te fazer feliz. Habituámo-nos a ouvir perguntar «o que queres ser» em vez de «quem queres ser»”. Trabalho que não é tudo, até porque “o aborrecimento é super importante. Não ter nada para fazer é super importante. Hoje em dia não existem momentos de silêncio, de quebra”, partilha Serrano, descrevendo coisas parvas que por vezes dá por si a experimentar, como “uma rotina diária de 25 minutos, que temos de experimentar passo a passo, só porque é coreana e está em voga”.
Falou-se ainda das adaptações de ambos os livros a séries televisivas – ainda nos segredos dos deuses literários – daquilo que é para ambas um bom dia e de se as suas carreiras profissionais não entrarão em conflito com a escrita de livros. Danya, que chegou a pôr de lado a carreira de agente literária para se dedicar somente à escrita, decidiu depois regressar. “Permite-me de alguma forma uma ligação ao mundo. Acho que farei ambos os trabalhos para sempre. Gosto de estar ligada ao trabalho de outros, é importante para o meu ego. Se as coisas correrem mal, sempre tenho o dos outros para me sentir satisfeita – eu sei, é um pouco trágico!”.
Quanto a Beatriz Serrano, traça uma linha entre ambos, ainda que o jornalismo seja um bom treino para o romance. “Para mim são dois mundos separados, mesmo que no futuro possa escrever um livro de não-ficção. O medo da página branca não se coloca enquanto escritora, porque se passa o mesmo com o jornalismo. O deadline é importante no jornalismo, e ajuda-me enquanto escritora”. Uma conversa que foi como chá e bolachas numa tarde chuvosa, e que provou que o trabalho é mesmo uma grande chatice.
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Fotos: Luísa Velez
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