Give me your love
And I’ll give you the perfect lovesong
With a divine Beatles bassline
And a big old Beach Boys sound
I’ll match you pound for pound
Like heavy-weights in the final round
We’ll hold on to each other
So we don’t fall down
Os versos acima transcritos foram sacados a “Perfect Lovesong” (ouvir aqui), canção perfeita dos Divine Comedy que, com muito humor, classe e a quantidade certa de favos de mel, nos falam de um sentimento dado ao agitar dos batimentos cardíacos. Trazer o Amor para um festival literário poderia, não é difícil imaginá-lo, ter resvalado para o desastre, mas o speed dating literário entre Maaza Mengiste e Burhan Sönmez, mediados pelo cupido Luís Ricardo Duarte, acabou por ser uma das melhores conversas a que se assistiu no primeiro fim-de-semana do Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos, edição 2024.
“I just want to know what love is”, lança o moderador a dois escritores cujos livros tendem a conter todo o peso do mundo. “Sob a ameaça iminente do exército fascista de Mussolini, Hirut, uma jovem que acaba de perder ambos os pais, esforça-se por se adaptar à sua nova vida como criada”, lê-se na sinopse de “O Rei-Sombra” – livro de Maaza Mengiste que inaugurou a Colecção Alberto Manguel, publicada pela Tinta da China -, fogo que “Pedra e Sombra” – romance que deu a Burhan Sönmez o Prémio do Romance Orhan Kemal na Turquia – alimenta com o mesmo carvão: “Avdo mal tem memória da sua mãe, mas sabe que se perdeu dela num mercado. Durante anos, o menino vagueia pelas cidades da Turquia, aprende a dizer «mãe» nas mais diversas línguas aí faladas e sobrevive cantando pelas ruas”.
“Escrevo sobretudo sobre a guerra, a revolução, mas não conseguiria fazê-lo se não tivesse um sentido profundo do que é o amor, do que pode fazer com ele. Uma revolução começa sempre com uma semente de amor”, diz-nos Maaza, enquanto Burhan aponta à complexidade, manipulação e amplitude do sentimento. “É um tópico incómodo. Está em todo o lado, mas é difícil falar sobre ele, trata-se de um grande desafio. Quando falamos de amor, o que queremos dizer exactamente? No meu país, quando um homem no tribunal diz ter matado uma mulher por amor, isso é amor?”. Refere-se ao amor como um acto transformador, dando o exemplo de uma das cenas-emblema de “O Principezinho”, na qual o amor se revela através do poder da memória, numa associação dos cabelos louros do protagonista aos campos de trigo dourado.
O humor não ficou de fora, surgindo após frases mais elaboradas ou partidas pregadas pelo timing certo. “O amor é uma emoção que esconde uma complexidade de coisas, que pressupõe uma abertura para se experienciar algo que está para além da fisicalidade. Mas por vezes o amor é estúpido”, brinca Mazza, enquanto Burhan enumera os diferentes tipos de amor, dizendo que é fácil encontrá-lo mas difícil de o manter e construir a partir dessa centelha inicial, até ser interrompido pelo bater do sino, que vai marcando os compassos das conversas Folianas: “Seis e meia. É uma boa hora para nos apaixonarmos”.
Mas como nos apaixonarmos pelas personagens cruéis que são produto da imaginação, vivendo paredes-meias com o escritor durante o longo processo de escrita? Mais do que o amor, para Maaza é a necessidade de compreensão que está em causa: “O que tento fazer com os personagens cruéis é imaginá-los como seres humanos complexos, perdidos numa ratoeira. Pegar numa vulnerabilidade e desenvolvê-la. Coloco os meus personagens em conflito para testar até onde, enquanto seres humanos, podem ir. Posso não concordar com as personagens mas quero tentar compreendê-las, mesmo que isso cause algum desconforto”. Neste jogo de amor-ódio, Burhan Sönmez viaja até ao Império Russo. “Enquanto escritores temos de amar as personagens, mesmo as ruins. Tenho a certeza de que Dostoiévski terá amado Raskólnikov”.
O amor pela linguagem e pela fixação de um povo em perigo foi trazido para a conversa por Burhan Sönmez, que começou por referir o grupo de leitores da vila em que cresceu, ligando-o ao momento criativo. “Eles acreditam que estou a escrever sobre as suas vidas. Quando regresso, dizem-me que não contei bem a sua história e que temos de ir beber um chá para falar sobre isso. Temos papel, caneta, umas pessoas na sala, mas afinal quem são elas? Dostoiévski ou as pessoas da aldeia?”. Sönmez nasceu em 1965 numa pequena aldeia do centro da Turquia e, apesar de a sua família ser de expressão curda, na altura esta língua tinha sido banida, e apenas o turco era ensinado nas escolas. “Apenas vi um romance curdo aos 25 anos. Como colocar esta língua no pedestal?”. A verdade é que acabou por aprender a língua, e o seu mais recente romance, intitulado “Lover of Franz K.” (2024), foi escrito em curdo, estando apenas disponível numa de entre centenas de livrarias turcas. “Não me importo que assim o seja. É uma questão de respeito e dignidade”, diz, arrancando uma sonora ovação.
A questão da linguagem é também central no livro de Maaza Mengiste, que parte do território da imaginação para ir trocando de outfit de acordo com a crueza dos cenários: ”Como é que a imaginação nos dá a possibilidade de nos transportar para outros lugares? Parti desta interrogação para a linguagem. Nos momentos mais bárbaros de “O Rei-Sombra”, a linguagem torna-se mais bela, começa a trabalhar com metáforas. Quero esticar as frases e ver até onde aguentam. A minha escrita é uma exploração artística da linguagem”.
“Precisamos de novas canções e de novos épicos?”, lança Ricardo Duarte, aproveitando o facto de ambos citarem Homero no início dos seus livros. “Talvez não”, diz-nos Maaza. “Há historias que nos têm sido contadas há séculos, a verdade é que não as temos escutado com atenção. As canções tradicionais que as pessoas cantam no meu país, por exemplo, falam de amor e da vida, mas não pensamos nelas como história – e são-no. Apenas temos olhado para os registos oficiais”.
Burhan Sönmez decide regressar à linguagem, nomeando-a como um acto de paixão e resistência. “Sou parte de uma população oprimida. Onde falar a língua de um vizinho é um acto de amor, e se tenta compreender os sentimentos do outro na sua própria linguagem. Aprender uma língua é uma forma de construir relações”.
A fechar, Maaza Mengiste debruça-se sobre a história familiar que foi inspiração para “O Rei-Sombra”, e que surgiu apenas após vários anos de investigação, isto por nunca se ter lembrado de fazer perguntas dentro da sua própria família. Uma história que envolve uma bisavó com um casamento arranjado, não consumado ainda por ser demasiado jovem, que decide ir a tribunal pela luta de uma arma e o direito de ir combater numa guerra em vez do marido. Conseguiu vencer o caso, foi combater e, no regresso, lutou pelo divórcio e o direito de ter todos os amantes que quisesse. “É por isso que temos uma grande família”, diz, lembrando-nos de que o amor também pode ser retribuído com uma boa gargalhada.
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Fotos: Luísa Velez
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