• Mil Folhas
  • Música Com Cabeça
  • Cine ou Sopas
deusmelivro
Perfect Lovesong, Divine Comedy, Folio, Folio 2024, Deus Me Livro, Pedra e Sombra, O Rei-Sombra, Maaza Mengiste, Burhan Sönmez, Luís Ricardo Duarte, Folio Autores
Mil Folhas 0

Folio 2024: Amor, linguagem e uma boa gargalhada

Por Pedro Miguel Silva · Em 14/10/2024

Give me your love
And I’ll give you the perfect lovesong
With a divine Beatles bassline
And a big old Beach Boys sound
I’ll match you pound for pound
Like heavy-weights in the final round
We’ll hold on to each other
So we don’t fall down

Os versos acima transcritos foram sacados a “Perfect Lovesong” (ouvir aqui), canção perfeita dos Divine Comedy que, com muito humor, classe e a quantidade certa de favos de mel, nos falam de um sentimento dado ao agitar dos batimentos cardíacos. Trazer o Amor para um festival literário poderia, não é difícil imaginá-lo, ter resvalado para o desastre, mas o speed dating literário entre Maaza Mengiste e Burhan Sönmez, mediados pelo cupido Luís Ricardo Duarte, acabou por ser uma das melhores conversas a que se assistiu no primeiro fim-de-semana do Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos, edição 2024.

“I just want to know what love is”, lança o moderador a dois escritores cujos livros tendem a conter todo o peso do mundo. “Sob a ameaça iminente do exército fascista de Mussolini, Hirut, uma jovem que acaba de perder ambos os pais, esforça-se por se adaptar à sua nova vida como criada”, lê-se na sinopse de “O Rei-Sombra” – livro de Maaza Mengiste que inaugurou a Colecção Alberto Manguel, publicada pela Tinta da China -, fogo que “Pedra e Sombra” – romance que deu a Burhan Sönmez o Prémio do Romance Orhan Kemal na Turquia – alimenta com o mesmo carvão: “Avdo mal tem memória da sua mãe, mas sabe que se perdeu dela num mercado. Durante anos, o menino vagueia pelas cidades da Turquia, aprende a dizer «mãe» nas mais diversas línguas aí faladas e sobrevive cantando pelas ruas”.

Perfect Lovesong, Divine Comedy, Folio, Folio 2024, Deus Me Livro, Pedra e Sombra, O Rei-Sombra, Maaza Mengiste, Burhan Sönmez, Luís Ricardo Duarte, Folio Autores

“Escrevo sobretudo sobre a guerra, a revolução, mas não conseguiria fazê-lo se não tivesse um sentido profundo do que é o amor, do que pode fazer com ele. Uma revolução começa sempre com uma semente de amor”, diz-nos Maaza, enquanto Burhan aponta à complexidade, manipulação e amplitude do sentimento. “É um tópico incómodo. Está em todo o lado, mas é difícil falar sobre ele, trata-se de um grande desafio. Quando falamos de amor, o que queremos dizer exactamente? No meu país, quando um homem no tribunal diz ter matado uma mulher por amor, isso é amor?”. Refere-se ao amor como um acto transformador, dando o exemplo de uma das cenas-emblema de “O Principezinho”, na qual o amor se revela através do poder da memória, numa associação dos cabelos louros do protagonista aos campos de trigo dourado.

O humor não ficou de fora, surgindo após frases mais elaboradas ou partidas pregadas pelo timing certo. “O amor é uma emoção que esconde uma complexidade de coisas, que pressupõe uma abertura para se experienciar algo que está para além da fisicalidade. Mas por vezes o amor é estúpido”, brinca Mazza, enquanto Burhan enumera os diferentes tipos de amor, dizendo que é fácil encontrá-lo mas difícil de o manter e construir a partir dessa centelha inicial, até ser interrompido pelo bater do sino, que vai marcando os compassos das conversas Folianas: “Seis e meia. É uma boa hora para nos apaixonarmos”.

Perfect Lovesong, Divine Comedy, Folio, Folio 2024, Deus Me Livro, Pedra e Sombra, O Rei-Sombra, Maaza Mengiste, Burhan Sönmez, Luís Ricardo Duarte, Folio Autores

Mas como nos apaixonarmos pelas personagens cruéis que são produto da imaginação, vivendo paredes-meias com o escritor durante o longo processo de escrita? Mais do que o amor, para Maaza é a necessidade de compreensão que está em causa: “O que tento fazer com os personagens cruéis é imaginá-los como seres humanos complexos, perdidos numa ratoeira. Pegar numa vulnerabilidade e desenvolvê-la. Coloco os meus personagens em conflito para testar até onde, enquanto seres humanos, podem ir. Posso não concordar com as personagens mas quero tentar compreendê-las, mesmo que isso cause algum desconforto”. Neste jogo de amor-ódio, Burhan Sönmez viaja até ao Império Russo. “Enquanto escritores temos de amar as personagens, mesmo as ruins. Tenho a certeza de que Dostoiévski terá amado Raskólnikov”.

O amor pela linguagem e pela fixação de um povo em perigo foi trazido para a conversa por Burhan Sönmez, que começou por referir o grupo de leitores da vila em que cresceu, ligando-o ao momento criativo. “Eles acreditam que estou a escrever sobre as suas vidas. Quando regresso, dizem-me que não contei bem a sua história e que temos de ir beber um chá para falar sobre isso. Temos papel, caneta, umas pessoas na sala, mas afinal quem são elas? Dostoiévski ou as pessoas da aldeia?”. Sönmez nasceu em 1965 numa pequena aldeia do centro da Turquia e, apesar de a sua família ser de expressão curda, na altura esta língua tinha sido banida, e apenas o turco era ensinado nas escolas. “Apenas vi um romance curdo aos 25 anos. Como colocar esta língua no pedestal?”. A verdade é que acabou por aprender a língua, e o seu mais recente romance, intitulado “Lover of Franz K.” (2024), foi escrito em curdo, estando apenas disponível numa de entre centenas de livrarias turcas. “Não me importo que assim o seja. É uma questão de respeito e dignidade”, diz, arrancando uma sonora ovação.

A questão da linguagem é também central no livro de Maaza Mengiste, que parte do território da imaginação para ir trocando de outfit de acordo com a crueza dos cenários: ”Como é que a imaginação nos dá a possibilidade de nos transportar para outros lugares? Parti desta interrogação para a linguagem. Nos momentos mais bárbaros de “O Rei-Sombra”, a linguagem torna-se mais bela, começa a trabalhar com metáforas. Quero esticar as frases e ver até onde aguentam. A minha escrita é uma exploração artística da linguagem”.

Perfect Lovesong, Divine Comedy, Folio, Folio 2024, Deus Me Livro, Pedra e Sombra, O Rei-Sombra, Maaza Mengiste, Burhan Sönmez, Luís Ricardo Duarte, Folio Autores

“Precisamos de novas canções e de novos épicos?”, lança Ricardo Duarte, aproveitando o facto de ambos citarem Homero no início dos seus livros. “Talvez não”, diz-nos Maaza. “Há historias que nos têm sido contadas há séculos, a verdade é que não as temos escutado com atenção. As canções tradicionais que as pessoas cantam no meu país, por exemplo, falam de amor e da vida, mas não pensamos nelas como história – e são-no. Apenas temos olhado para os registos oficiais”.

Burhan Sönmez decide regressar à linguagem, nomeando-a como um acto de paixão e resistência. “Sou parte de uma população oprimida. Onde falar a língua de um vizinho é um acto de amor, e se tenta compreender os sentimentos do outro na sua própria linguagem. Aprender uma língua é uma forma de construir relações”.

A fechar, Maaza Mengiste debruça-se sobre a história familiar que foi inspiração para “O Rei-Sombra”, e que surgiu apenas após vários anos de investigação, isto por nunca se ter lembrado de fazer perguntas dentro da sua própria família. Uma história que envolve uma bisavó com um casamento arranjado, não consumado ainda por ser demasiado jovem, que decide ir a tribunal pela luta de uma arma e o direito de ir combater numa guerra em vez do marido. Conseguiu vencer o caso, foi combater e, no regresso, lutou pelo divórcio e o direito de ter todos os amantes que quisesse. “É por isso que temos uma grande família”, diz, lembrando-nos de que o amor também pode ser retribuído com uma boa gargalhada.

—

Fotos: Luísa Velez

Burhan SönmezDeus Me LivroDivine ComedyFOLIOFolio 2024Folio AutoresLuís Ricardo DuarteMaaza MengisteO Rei-SombraPedra e SombraPerfect Lovesong

Pedro Miguel Silva

Pode Gostar de

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors, Mil Folhas

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista, Mil Folhas

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular, Mil Folhas

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

Sem Comentários

Deixe uma opinião Cancelar

Siga-nos aqui

Follow @Deus_Me_Livro
Follow on Instagram

Mil Folhas

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors,

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

    08/05/2025
  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista,

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

    08/05/2025
  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular,

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

    07/05/2025
  • Dentro da Tenda, Lucie Lučanská, Deus Me Livro, Crítica, Planeta Tangerina,

    “Dentro da Tenda” | Lucie Lučanská

    07/05/2025
  • Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria, Mariana Enriquez, Deus Me Livro, Crítica, Quetzal,

    “Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria” | Mariana Enriquez

    30/04/2025
Acha o Deus Me Livro diferente? CLIQUE AQUI.

Archives

  • May 2025
  • April 2025
  • March 2025
  • February 2025
  • January 2025
  • December 2024
  • November 2024
  • October 2024
  • September 2024
  • August 2024
  • July 2024
  • June 2024
  • May 2024
  • April 2024
  • March 2024
  • February 2024
  • January 2024
  • December 2023
  • November 2023
  • October 2023
  • September 2023
  • August 2023
  • July 2023
  • June 2023
  • May 2023
  • April 2023
  • March 2023
  • February 2023
  • January 2023
  • December 2022
  • November 2022
  • October 2022
  • September 2022
  • August 2022
  • July 2022
  • June 2022
  • May 2022
  • April 2022
  • March 2022
  • February 2022
  • January 2022
  • December 2021
  • November 2021
  • October 2021
  • September 2021
  • August 2021
  • July 2021
  • June 2021
  • May 2021
  • April 2021
  • March 2021
  • February 2021
  • January 2021
  • December 2020
  • November 2020
  • October 2020
  • September 2020
  • August 2020
  • July 2020
  • June 2020
  • May 2020
  • April 2020
  • March 2020
  • February 2020
  • January 2020
  • December 2019
  • November 2019
  • October 2019
  • September 2019
  • August 2019
  • July 2019
  • June 2019
  • May 2019
  • April 2019
  • March 2019
  • February 2019
  • January 2019
  • December 2018
  • November 2018
  • October 2018
  • September 2018
  • August 2018
  • July 2018
  • June 2018
  • May 2018
  • April 2018
  • March 2018
  • February 2018
  • January 2018
  • December 2017
  • November 2017
  • October 2017
  • September 2017
  • August 2017
  • July 2017
  • June 2017
  • May 2017
  • April 2017
  • March 2017
  • February 2017
  • January 2017
  • December 2016
  • November 2016
  • October 2016
  • September 2016
  • August 2016
  • July 2016
  • June 2016
  • May 2016
  • April 2016
  • March 2016
  • February 2016
  • January 2016
  • December 2015
  • November 2015
  • October 2015
  • September 2015
  • August 2015
  • July 2015
  • June 2015
  • May 2015
  • April 2015
  • March 2015
  • February 2015
  • January 2015
  • December 2014
  • November 2014
  • October 2014
  • September 2014
  • August 2014
  • July 2014
  • Contacto