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Folio 2023: Sob a luz de José Pinho, num dia em que se falou de amor e morte

Por Pedro Miguel Silva · Em 17/10/2023

Ao percorrermos, em dias de Folio, as ruas da vila de Óbidos, ainda esperamos encontrar, num dos sentidos do vaivém, o inventor José Pinho, transportando ao ombro a clássica sacola. Na sua oitava edição, o Festival Literário Internacional de Óbidos presta tributo ao maior ideólogo da vila literária, seja através de testemunhos, conversas ou de um mural desenhado no Jardim da Livraria do Mercado, onde este ano se pode beber um copo a boas e – sobretudo – a más horas.

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Uma dessas conversas teve lugar no dia 13 (sexta-feira) no The Literary Man Hotel, onde se desvendou um lado desconhecido, improvisado, desenrascado e absolutamente genial, que levou ao nascimento da vila literária de Óbidos e à criação do melhor festival literário que tem lugar em Portugal.

“E agora, José? – a ideia da Vila Literária” era o mote, num serão alimentado por Telmo Faria, Mafalda Milhões e Vasco Coutinho, numa sala preenchida por familiares, amigos do livreiro ou leitores agradecidos, que contaram e ouviram contar histórias que soaram como se tivessem sido sacadas ao universo da ficção científica.

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“Não sei se lhe chame atmosfera ou carisma. Era uma coisa muito própria”, começa Mafalda Milhões antes de abrir o livro, recordando uma das primeiras conversas sérias que teve com José Pinho. “És um vigarista?”, perguntou, disparando nova rajada depois de receber uma negativa: “És maçom? Um mafioso qualquer? Só quero saber como se abre tanta livraria”. A resposta chegou de pronto: “Vou ensinar-te tudo o que sei. Começas com uma grande e acabas com uma pequena”. Começou mis ou menos aí uma história que, até à data, conheceu já oito finais felizes, incluindo a designação de Óbidos como um Cidade Criativa da Literatura, atribuída pela Unesco em 2015.

“O Zé não recusava nem vinho velho nem uma ideia nova”, conta Mafalda, partilhando que, depois da primeira visita a Óbidos, José Pinho trazia sempre mais alguém a cada um dos regressos, começando a desenhar aquilo que para muitos mais pareceria a Biblioteca de Babel dos contos de Borges. Ou, dito de outra forma, “o conto d`O Rei Vai Nu. Um Lego imaginado. Ao estilo de uma cidade invisível do Calvino”.

Uma cidade construída a partir de uma chave copiada quase em segredo, com livrarias inventadas durante conferências de imprensa – à boleia de uma caixa que se ia multiplicando em cada edifício tomado – e que teve ainda de enfrentar a fúria da Igreja, receosa de ver, na Igreja de Santiago, livros que atentassem contra a moral e os bons costumes. Em jeito de brincadeira, a primeira apresentação na Livraria de Santiago acabou por ser “A Filha do Papa”, livro de Luís Miguel Rocha.

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Telmo Faria, então presidente do Município de Óbidos, recorda o fascínio de José Pinho por aquilo que chamou de Sociedade Literária, nome que parecia retirado de um thriller histórico ou de um livro sobre mágicos em lados opostos. Nas palavras de Vasco Coutinho, que participou na primeira assembleia de accionistas que decorreu em Istambul – como contou, no dia seguinte, numa outra conversa na Casa Abysmo -, “o Zé foi para nós todos um enorme desassossego”, que teve a ideia de abrir a Ler Devagar, “uma livraria de livros que ninguém compra”. Alguém que preferia “o espírito da coisa incerta para dar certa, e não da coisa certa”, dotado de uma loucura contagiosa e rara. Uma conversa tão boa que merecia publicação impressa.

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Um pouco mais cedo, Geoff Dyer – autor de “Os Últimos Dias de Roger Federer” – e João Tordo – escriba de “Uma Valsa com a Morte” – falaram sobre o Fim, tema da mesa conduzida por Maria João Costa. Fim que, neste caso, significou coisas várias, como o desenlace que inventam para os seus livros. “Nunca sei como o livro será. Espero oferecer uma viagem de descoberta intelectual com o leitor”, partilhou Dyer. Já Tordo, que traduziu e destacou “Areias Brancas” de Dyer como “uma meditação sobre a arte em lugares inesperados”, disse estranhar “os escritores que têm já os planos muito definidos”, revelando que o final da sua Valsa surgiu tardiamente, com a morte da avó.

E serão os livros uma forma de os escritores alcançarem a imortalidade? “Quando comecei a escrever pensei que os meus livros iriam durar para sempre. Dois anos depois do primeiro percebi que não seria bem assim”, conta Dyer, após a editora lhe ter ligado a dizer que ia retirar um livro seu de circulação, perguntando-lhe se quereria comprar alguns exemplares a preço de saldo. Sobre a morte, disse ter ganho uma nova perspectiva depois de experienciar um pequeno AVC há coisa de uma década: “Tive a consciência de que o chão se podia abrir a todo o momento. Durante uns meses passei a viver cada dia como se fosse o último. Depois passou e voltei aos donuts e a desafiar o colesterol”.

João Tordo recordou as expectativas dos vintes e dos trintas, numa existência que para si teve sempre uma dose de sofrimento. “A minha vida é cinquenta por cento dor e cinquenta por cento mais ou menos”.

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Dyer, que escreveu um livro de ténis que não é sobre ténis – e que mostrou pouco apreço pelas ardilosas tácticas de José Mourinho -, abordou o confronto entre pragmatismo e beleza no desporto, dizendo preferir “a dimensão da beleza, da fragilidade”.

Preparado para regressar à cidade de Nova Iorque – onde tudo começou – com um novo romance, Tordo falou dos livros de auto ajuda como uma positividade tóxica, partilhando o lema que o faz levantar-se diariamente: “Acordar de manhã e pensar que um dia vou morrer”. Um tema que Dyer aproveitou para referir-se a Los Angeles como “o epicentro da auto ajuda”, onde tudo é perfeito ao contrário de Inglaterra. “Nem é preciso sentido de humor”.

Sobre o facto de ambos estarem ligados ao universo musical, Dyer recordou o momento da invenção do walkman, objecto fundamental na escrita de “Mas é Bonito – um livro sobre jazz, improviso e domadores de feras”: “Escrevi o livro podendo caminhar. Sentia-me o Thelonious Monk mas sem qualquer talento“. Quanto a João Tordo, que em tempos mergulhou a fundo no universo do jazz, diz que agora só compõe “bandas sonoras para os meus próprios livros”, tendo trocado o jazz pela música clássica. “Estou mais chato”, brincou, antes de ser convidado a falar dos frescos acontecimentos de um eterno conflito: “Não dou opiniões. Guardo-as para as pessoas próximas. Conheço escritores que deram tantas opiniões que deixaram de ter leitores. A minha preocupação vai mais para o bairro, a comunidade, em construir um ambiente de harmonia a uma pequena escala”. “Era exactamente o que eu queria dizer”, atirou Dyer numa fuga para a frente, dizendo estar actualmente em modo de releituras, revelando a sua incapacidade, tanto aos vinte como agora, de se deixar encantar por Virginia Wolf: “Sinto que o meu gosto não evoluiu”.

Já com a noite cerrada e uma chuva tempestuosa a criar uma banda sonora na tenda maior do Folio, coube a duas escritoras da América do Sul a missão de falar sobre o Amor, conduzidas por Isabel Lucas.

Para a argentina Mariana Enriquez, actual e incontestável rainha do gótico e do terror do país de Borges, o amor tem uma estreita relação com o medo: “A dependência pode ser terrífica. O aceitar da violência, de se viver sob o olhar do outro. O lado fantasma, da perda do eu. O amor está mais perto do terror que do ódio”. Para Carla Madeira, triplamente publicada entre nós com o selo da Infinito Particular, “a imperfeição é o campo de manobra privilegiado da literatura”, estando o amor ligado a uma outra palavra que com ele rima: a dor.

E quanto ao escritor, escreverá para ser amado? “Escrever para ser amado é um pouco perigoso. Querer ser amado é algo anterior ao escritor. Mas quando estamos a escrever esse não pode ser o motor, a preocupação. É preciso escrever amando”, avançou Carla Madeira. Já Mariana disse não pensar muito no leitor quando escreve, confessando desenvolver uma paixão pelas suas personagens, que “passa na correção. Já o luto acontece depois da publicação”.

Ambas as escritoras recusam a literatura como um lugar de harmonia. Se, para Carla Madeira, a harmonia é sinal de transgressão, Mariana mostra ter interesse pela falsa normalidade, pelos lugares nos quais descobre a falta de conforto e a ansiedade. “A busca da harmonia e da ansiedade é uma permanente inquietação”, algo que não quer transportar para os seus livros.

Relativamente à experiência do amor, a autora de “Tudo é Rio” fala de “uma experiência de algo sempre em movimento, não de um lugar onde se chega”. Quanto à autora de “A Nossa Parte da Noite”, diz que pensar em duas pessoas felizes é como “entrar no território da ficção científica”, preferindo a ideia de que o amor é “o território do conflito”.

Amar é… (o leitor que preencha livremente o seu autocolante).

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Fotos cedidas pelo Folio.

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Pedro Miguel Silva

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