Longe vão os tempos em que, de mochila às costas, Jorge Carrión percorria o planeta em busca das mais castiças livrarias, tratando de registar um património que, ao contrário das bibliotecas públicas ou privadas, tende a ser apagado depois de chegada a falência, a insolvência ou qualquer outra calamidade que leve ao fecho destes “refúgios físicos e espirituais”, designação escolhida pelo autor de “Livrarias” (Quetzal, 2017) numa conversa com Isabel Lucas, que decorreu na Igreja de Santiago durante esta edição do Folio.
Em cima da mesa estava “Contra a Amazon” (Quetzal, 2023), livro no qual visita livrarias (reais ou inventadas) de todo o globo – incluindo também livrarias de livros usados -, elogia a figura do livreiro e se manifesta contra o mundo impessoal do algoritmo, tudo isto entre entrevistas, caminhadas e a revelação de segredos literários mais ou menos escondidos. Um livro que, curiosamente, nasceu de um outro, editado em 2019 com o selo da Ler Devagar, livraria criada por José Pinho: “Contra a Amazon sete razões: um manifesto; seguido de essa interrogação a que chamamos Livraria e desmantelando a minha biblioteca”. Pinho que, segundo o autor espanhol, era “um louco universal” no melhor dos sentidos, referindo que será ele o livreiro em destaque no episódio da The Book Lover Series dedicado a Lisboa, que estreará em breve num pequeno ecrã perto de nós.
Apesar de lutar contra o sistema e a desumanização da Amazon, Jorge Carrión mostra ter uma visão alargada e aberta na relação entre livreiro e leitor, recusando-se a apontar quem são os bons e os maus da fita: “Há maus livreiros independentes e bons livreiros em cadeias de livrarias”. As livrarias, que para Carrión foram “o que para a minha mãe e a minha avó foram as igrejas, têm um futuro por serem espaços físicos, tridimensionais”. Assim como o objecto livro, para ele inseparável do lápis e que, “até nos implementarem chips de leitura, continua a ser a melhor tecnologia disponível, com bateria infinita”. Um objecto que serve de “contentor, memória externa” e que, ao lado de outros seus semelhantes, constituirá “uma autobiografia contada a partir dos fragmentos sublinhados durante uma vida”.
Mostrando-se contra a bibliofilia, feita de livros caros que não são feitos para se tocar, o autor diz não emprestar livros “como forma de conservar uma amizade”, tendo contado como a sua vida mudou após a publicação de “Livrarias”: “Quando estava a escrever o que foi publicado nesse livro, era como um agente secreto. Via, olhava, tirava notas, comprava livros e não falava com ninguém. Quando “Livrarias” foi publicado em várias línguas, passei de um backpacker, que visitava uma livraria por dia, a um agente oficial. No Japão, por exemplo, visitei 23 livrarias num só dia, com motorista e tradutor”.
No clássico tema da arrumação da biblioteca pessoal – “a grande pergunta”, segundo o autor de “Contra a Amazon” -, que pode ir da cor da lombada ao estabelecimento de amizades profundas, defende uma ordenação que seja útil. No seu caso, as três categorias centrais são os amigos íntimos, os livros conhecidos e os livros ainda por conhecer.
Falando do seu projecto sobre as livrarias como algo “emocional, passional e nómada”, diz preferir as livrarias independentes de autor, mas não nega a importância das redes de livrarias ou das livrarias postal em levar pessoas para perto dos livros. Como aconteceu, por exemplo, com a sua tia, cuja primeira livraria em que entrou foi precisamente a Lello, onde tirou uma foto segurando orgulhosamente o livro do sobrinho. E esta, hein?
A fechar a programação da tenda principal esteve Terry Eagleton, um dos intelectuais mais lidos, comentados, amados e odiados em todo o mundo, numa conversa com Pedro Mexia que chegou a parecer um bate boca entre intelectuais – mas que Eagleton tratou de ir dinamitando com cargas de humor e dinamite como só um bom brit é capaz.
Autor de trabalhos de referência sobre teoria literária e pensamento crítico – ou a falta dele -, Eagleton tem escrito abundantemente sobre cultura, ideologia, política, religião e humor, estando publicado em Portugal maioritariamente com o selo das Edições 70 que, entre 2021 e 2023, fizeram chegar às livrarias cinco títulos: “Porque é que Marx Tinha Razão” (2021), “Como Ler Literatura” (2021), “Humor” (2022), “Sobre o Mal” (2022) e “Tragédia” (2023).
“O meu filho tem 26 anos. Está a dormir ali à frente. A primeira vez que viemos a Lisboa tinha-o carregado aos ombros. Foi há três anos. Mentira, foi há mais tempo. Não sei o guião. Presumo que hajam perguntas como qual é a montanha mais alta do Japão. Tenho lido enciclopédias para me treinar”.
Foi com esta vertigem e humor que Terry Eagleton, do alto das suas oito décadas, iniciou uma viagem pelo pensamento, onde houve espaço para alfinetar as universidades modernas – “Haviam instituições que treinavam a crítica. E que estavam ligadas a sociedade. Chamavam-se universidades.” -, crucificar a cultura americana – “Podes ser tudo o que quiseres. Que ridículo.” -, brincar com os seus – “A cultura inglesa é muito crítica. Não gostamos de nada nem sequer uns dos outros.” -, assumir o papel de velho do Restelo mas com graça – “Sou a única pessoa do planeta que nunca enviou um e-mail. O único lugar onde gostam de mim é num museu. Os miúdos espetam-me coisas para ver se estou vivo.” – elogiar a esperança trágica como a única que vale a pena – “Que chega depois de se atravessar a escuridão.” – ou, quase no fecho e ao sprint, mostrar-se pró-Palestina, recuperar Marx como o tipo que tinha razão, chamar idiotas aos que abraçam o ateísmo logo à primeira ou realçar “a dificuldade de ser socialista nos tempos actuais”. Uma espécie de marxista cristão que, entre piadas e marteladas, tratou de nos relembrar duras verdades: “De tempos a tempos estamos condenados a acabar na cama com as pessoas erradas”. Ámen, camarada.
Sem Comentários