Fechou em grande a 9ª edição do Folio – a primeira sem o irrequieto José Pinho -, apostada em pisar o risco num fim-de-semana onde se falou de gatos, de lugares improváveis para se esconder livros, do inacabado como o sumo da vida ou de como a música poderá ser um teste ariscado à coerência. Em 2024, o Folio irá realizar-se entre os dias 10 e 20 de Outubro sob o tema “Inquietação”, numa edição que irá também assinalar os 50 anos do 25 de Abril e os 500 de Luis de Camões.
Deste lado, a juntar ao desejo de ver a Exposição PIM! transformada num catálogo que possa ser levado para casa para memória futura, torce-se para que “géneros” como a literatura fantástica, o terror, a ficção científica ou o universo para “jovens adultos” possam ser acrescentados ao programa de festas. Olhamos agora, ao estilo de postais ilustrados, cartas curtas ou míseros telegramas, para o último fim-de-semana vivido no melhor festival literário nacional.
Lançamento da antologia: “Um gato onde pousar a cabeça”
João Paulo Cotrim tinha um grande amor aos gatos, fossem eles reais ou imaginários. Na Casa Abysmo, as águas dividiram-se entre amantes de cães e gatos, mas todos participaram num livro onde são os felinos domésticos ou os sem-abrigo felpudos – e o seu lado mais impenetrável ou inalcancável – os grandes protagonistas. Houve até quem, como um gato furtivo (alguém que no CC assina como Miguel Martins), tivesse escapado para fumar um cigarro num telhado todo ele improvisado, mas só depois de dizer que o seu amor aos animais acontece apenas com os que acabam cozinhados e, de preferência, no prato; Inês Fonseca Santos falou do olhar do gato como “o lugar do mistério que está também associado a infancia. O lugar da imaginação, do espanto, da inquietação, do enigma, daquilo que não conseguimos decifrar”. José Anjos referiu os muitos amigos imaginários do seu felino de estimação, dizendo que “os gatos que aqui estão são metafóricos. E por vezes eufóricos”; Henrique Manuel Bento Fialho, que decididamente prefere leões a gatos, partilhou a sua alergia física e mental ao bicho que lhe comia os peixes que, com carinho, ia colocando no aquário em criança, mas ainda assim leu-nos um poema escrito como um acto de contrição de um ateu, nascido num lugar em Siena onde cães e gatos andam quase de pata dada; Luísa Pires Barreto, que tratou das ilustrações mesmo jogando do lado canídeo, disse ter sido “um grande gozo desenhar estes gatos, sempre com um ar sacaninha”. Miau.
“Um gato onde pousar a cabeça”, uma edição Abysmo, apresenta poemas de João Paulo Cotrim, Valério Romão, Inês Fonseca Santos, Adolfo Luxúria Canibal, Miguel Martins, Rita Taborda Duarte, Raquel Nobre Guerra, Henrique Bento Fialho ou Cláudia R. Sampaio, entre outros, e desenhos de Luísa Pires Barreto.
Folio Autores: Inacabado
Elena Medel conversa com Héctor Abad Faciolince
Moderação: Ana Daniela Soares
Terá um escritor o receio de não terminar o livro que tem entre mãos? Ou o desejo de adiar, até ao limite, o último dos pontos finais, evitando largar as personagens de carne e tinta a que tanto se afeiçoou? Héctor Abad Faciolince, autor do reeditado “Somos o Esquecimento que Seremos” – e que escapou da morte ao trocar de lugar num jantar entre escritores na Ucrânia, isto quando escrevia um livro “sobre a decadência do corpo” -, disse ter a gaveta cheia de novelas que não conseguiu terminar, referindo que o mais difícil é mesmo “encontrar essa voz autêntica que o escritor quer seguir”. Recusa o final feliz, o mesmo a que Orson Wells se referiu como “o final antecipado”, e disse que se Kafka quisesse mesmo ser condenado ao esquecimento teria ele próprio tratado de queimar os seus manuscritos. Nesta fase da vida, confia apenas em mulheres mais novas como editoras – “São superstições. Se for homem terá de ser mais velho que eu”; vai perdendo cadernos onde escrevinha possíveis começos, que recupera pagando sucessivas recompensas de 50€; e, no que toca a diários, serviram-lhe para poder mostrar aos seus leitores que está longe de ser o bom da fita, distanciando-se também do mito e comparação parental – “A certa altura decidi publicar os meus diários íntimos para que os leitores vissem que não era tão boa pessoa como o meu pai”.
Elena Medel começou por referir o “vínculo inacabado da escrita”, algo que terá a ver com a sua própria insegurança. “Venho da poesia, o lugar do inacabado. Penso sempre que falta algo”. Sobre “As Maravilhas”, o seu primeiro livro publicado mas o quarto a ser escrito, disse ter nascido de uma personagem que se repetia nas novelas anteriores, sendo concluído longe da solidão a que habitualmente se confina. “Emocionei-me porque o último ponto final foi feito com a minha mãe sentada a meu lado, a ver televisão. Foi um caso raro”. Falou também de uma poeta que dizia que escrevia os piores poemas do mundo mas que, ainda assim, os transcrevia à mão deixando-os dispersos em bibliotecas – Medel veio a publicar uma antologia sua na La Bella Varsovia, editora da qual foi fundadora e onde permanece como directora após a integração no grupo Anagrama. Quanto aos finais, prefere aqueles que abrem caminho a múltiplas interpretações. “Trabalhei com essa ambiguidade porque me interessa muito a ideia de livro aberto”. Em relação aos diários, não deixa de sentir uma certa divisão num género que, por vezes, permite melhor conhecer os livros. “Para mim é complexo. Como leitora diria que sim. Como pessoa ou escritora tenho um certo pudor”. Abrir ou não abrir, eis a questão.
Folio Autores: Coerência
Leonardo Padura entrevistado por Carlos Vaz Marques
“Mario Conde não é um perdedor, é um derrotado. Um derrotado no sentido histórico, não pessoal. E o derrotado de uma geração: a minha”. As palavras são de Leonardo Padura, facilmente confundível com o alter ego Mario Conde, o investigador policial que, a certa altura, trocou o crime pelos livros – o que faz com que tenha de contar diariamente os trocos -, assumindo a missão de manter a fidelidade entre um grupo de amigos e fazendo de cada derrota um momento de dignidade. Mario Conde que está de volta em “Pessoas Decentes”, o 10º livro no qual participa, onde há crimes a rodos e uma violência tão gráfica que parece que a vemos em vinhetas de banda desenhada.
Diz-se que Leoardo Padura não gosta muito de falar de política, mas é o próprio que lá chega sem grandes empurrões. Como quando falou de uma feira do livro do seu país, onde o único livro disponível de sua autoria estava em… braille. “Sou tão invisível que só me tocando saberão que existo”, brincou, recuando depois aos anos de maior aperto democrático: “O clima e a geografia salvaram-nos de muitas coisas. Não há Sibérias. Morrer no ostracismo não é o mesmo que morrer”. Alguém que, por ter “um sentimento de pertença demasiado forte”, recusou sempre partir, mesmo que os livros tenham de ser publicados em Espanha. “Porque cheguei primeiro”, disse, apropriando-se de palavras ditas por uma poeta cubana. Numa mesa dedicada ao tema da coerência, percebeu-se que esta teria sido atirada às malvas por Conde se, no lugar dos Rolling Stones, tivessem sido os Beatles – assim a História e a vida o tivessem permitido – a tocar em Cuba no ano de 2016. Muito provavelmente, Conde até teria levado uma T-shirt onde se leria “Strawberry Fields Forever”.
Folio Mais
Conversa: “Mulher, Vida, Liberdade: o Irão aqui tão perto”
Com Raquel Vaz Pinto, Cristina Sampaio e Pedro Vieira
16 de Setembro de 2022 foi um dia negro para o Irão e para o mundo.Mahsa Amini foi espancada pela polícia dos costumes por não estar a usar «correctamente» o véu, acabando por não resistir aos ferimentos. Num país amordaçado, a sua morte levantou uma onda de protestos que ainda hojde ecoa no Irão, transformando-se num movimento feminista – e mais além – sem precedentes. Marjane Satrapi, autora de “Persepolis”, “Bordados” ou “Frango com Ameixas”, reuniu em “Mulher Vida Liberdade” três especialistas – Farid Vahid (politólogo), Jean-Pierre Perrin (jornalista), Abbas Milani (historiador) – e dezassete dos maiores talentos da banda desenhada, para nos dar a conhecer um movimento de enorme importância para o Irãrão e para todo o mundo.
Foi este livro, que “num mundo um pouco mais decente não existiria” – como lançou Pedro Vieira -, o mote para uma conversa com Raquel Vaz Pinto, uma “pro” no que a relações internacionais diz respeito, e com a cartoonista Cristina Sampaio, que recusa ter o poder nos lápis e canetas aceitando antes o dever moral. “As revoluções não se fazem com os desenhos, mas estes podem ser um estímulo. A BD política pode ser um despertar de consciências. É nesse sentido que pode ter algum poder”. Realçou a importância de “promover a tolerância através do desenho político”, recordando que, “enquanto voz crítica e sarcástica, mesmo nas democracias ocidentais”, o cartoonista foi sempre alvo de perseguições e ataques, tendo alguns cartoonistas seus conhecidos trocado o cartoon por outras artes a dada altura do caminho. Fosse após o ataque às instalações do Charlie Hebdo ou depois de uma temporada passada na prisão, com tortura ou não à mistura. A radicalização dos cartoonistas e dos meios de comunicação foi outro dos pontos abordados por Cristina Sampaio, que disse ter ficado chocada quando viu dois amigos ilustradores, cada um do seu lado da barricada, a degladiarem-se com os últimos acontecimentos em Israel e na Palestina.
Quanto a Raquel Vaz Pinto, disse ser importante “distinguir a liderança deste Irão e aquilo que são as pessoas”, lançando-se numa masterclass de história política sobre esta antiga Pérsia que foi um verdadeiro tratado. Uma sociedade que diz ser “cosmopolista e aberta”, com um imenso orgulho na sua tradição, mesmo que não encontre forma de o exprimir. Quanto a futurologias, isto num país onde “a guarda revolucionária controla cerca de dois tercos do PIB” e em que “menos de dois por cento dos iranianos vão a mesquita” num gesto de protesto, aponta a sucessão do próximo aiatolá como o momento decisivo. Porém, com a China ao barulho e a balança da sucessão a pender para uma passagem de testemunho familiar, o cenário é pouco animador. Ainda assim, o milagre pode acontecer. “Olhando só para o poder diria que não. Mas o que a História nos tem mostrado é que existem momentos de transição que não conseguimos imaginar. Até lá é preciso continuar a acompanhar esta sociedade civil iraniana, com uma vida extraordinariamente rica, que deveríamos conhecer um pouco melhor”. Este livro ilustrado é um bom primeiro passo.
Folio Mais
Conversa: “Biblioteca da Censura: Proibidos e Censurados – Escrever, editar e vender livros em Ditadura”
Com José Manuel Mendes, Rui Vaz Pinto, José Vigário Silva, Zeferino Coelho e Bárbara Reis
Cooperativas de batatas, livros escondidos em frigoríficos ou atrás da máquina de café, tête-a-têtes com censores, tudo servia para tentar levar o livro a boa edição – ou, em caso de censura, à estante do leitor ávido de mais uma subversão literária, abalando os alicerces de um regime que para uns durou quase uma vida inteira. Uma boa conversa sobre escrever, editar e vender livros em ditadura, que mostrou o lado inventivo dos editores mas também o muito que ficou por escrever em tempos de censura.
Fotos oficiais do Folio
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O Deus Me Livro esteve no Folio a convite da organização.
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