A literatura tem sido, praticamente desde que o Homem começou a juntar letras e a formar palavras, um campo onde o escritor projecta o seu “eu” – e todos os “eus” alheios a que vai deitando a mão. Porém, foi em anos mais ou menos recentes que se decidiu dar um nome à coisa, com o termo “autoficção” a ser alvo de falatório em tudo o que é jornal, revista ou blogue literário. E isto à boleia de nomes como os de Rachel Cusk, Karl Ove Knausgard ou Annie Ernaux, só para mencionar alguns. O nível de intervenção e descaramento é, ainda assim, muito diferente, havendo quem trate de colocar várias camadas por cima ou, simplesmente, decida deixar tudo à mostra, num strip literário onde uma mudança de nomes e geografias cumpre o papel – pelo menos para o escritor.
Na mesa do Folio (15 Outubro) dedicada ao tema da Memória – numa 8ª edição dedicada ao Risco -, moderada por Luís Ricardo Duarte, estiveram sentadas duas gerações separadas por quase quatro décadas, onde a “autoficção”, bem como o peso da memória, são vividos e inventados de forma muito distinta. Em comum, o facto de ambas terem apenas um livro publicado em Portugal.
A norueguesa Vigdis Hjorth (n. 1959) começou, curiosamente, pela literatura infantil. Formada em Filosofia, Literatura e Ciência Política, publicou a sua primeira obra em 1983. Com “Herança” – “Will and Testament” na versão inglesa -, com edição portuguesa pela Livros do Brasil, ganhou o Prémio da Crítica Norueguesa para Literatura e o Prémio dos Livreiros Noruegueses, tendo sido também seleccionada nos Estados Unidos da América para o National Book Award for Translated Literature. A par da sensação criada junto de crítica e leitores, “Herança” gerou uma fúria familiar tremenda, com livros escritos como resposta literária – da irmã – ou ameaças de processos em tribunal – da mãe.
Quanto a Beatrice Salvioni (n. 1995), formou-se em Filologia Moderna pela Universidade Católica de Milão. Foi aluna da Scuola Holden, dirigida pelo mestre Alessandro Baricco, e ganhou o Prémio Calvino 2021, com o conto «Il volo notturno delle lingue mozzate», bem como o Prémio Raduga 2021. “A Malnascida”, publicado em Portugal com o selo da Alfaguara, é o seu primeiro romance, com o qual obteve o Prémio Scuola Holden e cujos direitos foram vendidos a trinta e dois editores antes da publicação em italiano, estando a adaptação para série televisiva para breve. Um livro iniciático nascido a partir de uma inquietação familiar e onde há, nas duas personagens principais, muito da própria Beatrice, como veio a revelar mais à frente.
“Todos os seres humanos são contadores de histórias. Mas contadores algo mentirosos. Este livro é um grito, uma forma de libertação”, começou por dizer Vigdis sobre esta “Herança”. “Insisto em dizer que é um romance. A minha irmã insiste em dizer que somos nós, e escreveu num jornal que historias destas podem destruir famílias. A verdade é que a minha família foi destruída há trinta anos. O que me interessa são as consequências sobre o facto de não se falar dos traumas”. Autoficções à parte, para a escritora norueguesa “o importante é encontrar a voz e segui-la”. Porém, para que o desinteresse da realidade não se imponha, “há que ser criativo. Como Picasso”.
Beatrice reclama também a mentira como forma de aplacar a chama que só a urgência da escrita aplaca: “Toda a gente mente. Inventamo-nos todos os dias perante os outros de forma não verdadeira. Ser um escritor é poder mentir também sobre outras coisas. Sempre detestei escrever diários. A minha vida é muito aborrecida para escrever sobre isso, por isso invento histórias. Mas, nessa invenção, estou lá ao mesmo tempo”. Para este “A Malnascida”, a memória principal foi a que tinha dos seus avós, acrescida da “curiosidade sobre o passado de uma história familiar que nunca me foi contada”. Uma história que nega o tempo presente e mergulha num dos mais efeverscentes períodos da vida italiana. “O Fascismo era o período perfeito para esta história. A oportunidade de o olhar a distância. É importante termos professores que ensinem a história do Fascismo às criancas, para que estas se possam proteger”. Sobre a criação das personagens, diz sentir um pouco de si em todas as que cria. “Até nas mais odiadas. O que me poderá levar a uma consulta de psicologia”.
Vigdis disse ter-se tornado escritora depois de perceber que o seu desejo de subir ao palco era infundado, trocando-o por escrever argumentos e histórias para quem o pisasse. Preferindo não falar dos projectos que tem em mãos, disse nunca regressar aos textos antigos, apontando como peça fundamental do seu percurso a sua primeira editora – que acabou por desempenhar essa função durante três décadas -, que respondeu – a única resposta que teve – ao envio do seu manuscrito e a aconselhou a escrever uma versão melhor – missão que cumpriu a preceito.
Beatrice, que disse ter sido uma “filha única mas nunca sozinha”, recordou os tempos em que o trabalho de sonho seria o de cavaleira, pelo que “foi natural encontrar no papel essa possibilidade de viver todas as aventuras que gostaria”. Para além do romance, escreveu já historias de bruxas e de vampiros, tudo com muito sangue à mistura. “Infelizmente a minha mãe guardou tudo. Até aquelas coisas horríveis com massa que fazíamos na escola e as minhas terríveis tentativas de começo. Penso que veja nisso uma espécie de chantagem futura”, brinca. Quanto a figuras marcantes, destaca aquela que lhe impôs a importância da primeira frase, jurando nunca mais começar um texto com a beleza de um pôr do sol. Uma lição aprendida com esmero, como nos mostra o arranque de um livro de estreia que faz de Beatrice Salvioni um nome a seguir de perto: “É difícil tirar de cima o corpo de um morto”.
A geografia pode ter mudado, mas a Abysmo continua, agora instalada no edifício da Escola de Hotelaria, a recrutar leitores para a festa do livro, este ano seduzidos pelas muitas referências aos mais adoráveis felinos domésticos, que vao gatinhando em muitas das conversas. O cenário, aliás, está a ser desenhado a preceito pelo ilustrador Nuno Saraiva que, além de ter ajudado a tirar os pontos do Y, dá cor e traço a uma ninhada que se diverte a brincar com novelos de lã, num work in progress que tem sido um regalo seguir de dia para dia.
“Com tantos vídeos de gatinhos até perco a vontade de ler” foi o nome da conversa que juntou, sob a moderação de Raquel Santos, um quarteto formado por Bárbara Bulhosa (Editora da Tinta da China), Filipe Homem Fonseca (Escritor e guionista), Regina Duarte (Comissária do PNL) e João Nazário (Livraria Arquivo).
Segundo Raquel Santos, “uma mesa de pura especulação” onde se pretendia inventar pistas sobre o futuro do livro impresso e da leitura, e que serviu também para uma sessão de corte e costura sobre os tempos de leitura, os livros abordados na escola ou os hábitos de leitura dos professores. Houve espaço ainda, entre alguma tensão e clivagens, para proferir vaias ou elogios ao BookTok, falar da dificuldade de se arrancar a ficha da grelha tecnológica, recusar advertências de conteúdos problemáticos – em jeito de pré-aviso literário – ou protestar contra a ditadura do algoritmo e a infantilização da reescrita sob o estandarte do politicamente correcto. Por aqui, celebramos o carácter lúdico da literatura à boleia de uma frase de Filipe Homem Fonseca: “A literatura não tem de educar, é uma porta aberta para a descoberta”. Entremos de rompante e sem pedir licença.
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