Um nasceu num país que já não existe, algo que lhe valeu uma trabalheira danada quando foi renovar o cartão de cidadão, e diz não ter encontrado ainda “o sítio onde plantar o limoeiro”; o outro construiu uma personagem que com ele se confunde – usam o mesmo nome e apelido -, e mantém com o seu país de origem uma relação de “estrangeria”, tendo passado a infância com a sensação de “poder assistir ao jogo mas não participar nele”. O primeiro dá pelo nome de Sandro William Junqueira, o segundo assina como Eduardo Halfon, e ambos falaram, com a moderação de Ricardo Duarte, sobre Identidade nesta edição do FOLIO dedicada ao poder.
Nascido “por acidente” na Rodésia, Sandro William Junqueira vive em Portugal desde miúdo, mas não assume, ainda assim, a sua cidadania: “A minha nação, o meu país, é a imaginação”. Para tal, diz precisar de conhecer a geografia de origem para resolver um problema que, por esta altura, anda na ordem do místico ou metafísico. A sua chegada à escrita aconteceu apenas “depois de ter falhado em muitas coisas relacionadas com a arte”, como a pintura, a escultura, a música – teve uma banda chamada Cozido à Portuguesa -, ou mesmo a poesia e o conto. O clique literário deu-se com “A Ilha Misteriosa”, de Jules Verne, o livro que o tornou leitor e que, anos mais tarde e após todos os falhanços, o levou à escrita de romances.
Os seus três primeiros romances estão unidos pelo “território que nunca é nomeado, que dão ao leitor a capacidade de poder intervir”, tendo a sua noção de literatura e de escrita mudado com “A Sangrada Família”, situado numa serra real mas também não nomeada, ainda que diga persistir algo de comum a toda a sua escrita: “Dar voz aos despidos e aos que estão na margem. Responder aos socos que a vida me dá”. Falando de Sebald como o “percursor da fusão e do cruzamento entre géneros literários”, disse que o processo criativo normalmente é colocado em marcha quando está muito tempo sem escrever, e que todos os livros começam com uma imagem à qual tem de ir ao encontro, por muito mais estranha que seja. Quanto à escrita, não consegue nunca continuar o romance a partir de onde o deixou, obrigando-se a regressar sempre à primeira página: “Estou sempre a passar a ferro”. O próximo livro, esse, também já está em andamento, e será sobre algo bem real: o bacalhau.
Eduardo Halfon, que desde há quinze livros vai escrevendo sobre uma personagem que é ele mas também o não é, diz ter nascido também por acidente na Guatemala. Com quatro avós chegados de diferentes geografias, viveu “uma infância estranha num país católico”, mais estranha ainda para quem como ele tinha – e tem – ascendência judia. Quanto à escrita, essa não o ajudou em nada no processo de unificação familiar: “Há quem pense que escrever ajuda. No meu caso é o contrário. Ler sim, é terapêutico”. Quanto ao seu processo criativo, “ainda que pareça autobiográfico, é ficção o que estou a fazer. São contos e novelas. Uso a minha vida como pano de fundo, uma espécie de teatro. O cenário é a minha vida, o drama é a ficção”. Para além de apresentar o vício do tabaco, o Halfon personagem “tem uma voz que não é a minha”, havendo um véu colocado entre ambos, “um truque de magia”.
Engenheiro desde criança e dotado de uma mente “neurótica e ordenada”, não foi dado a leituras até ter tirado um curso de literatura na Guatemala, isto algum tempo depois de se sentir desenraizado em Nova Iorque e enveredar pela filosofia como forma de “curar a crise existencial”. Acabou por tirar um curso de literatura na Guatemala e apaixonou-se. “A leitura foi o salva vidas a que me agarrei. A escrita foi uma reacção a demasiada leitura”.
Sobre a identidade entre géneros literários foi referido “O Anjo Literário”, um híbrido de entrevistas, relatos e diário que, por esta altura, é visto por Halfon – ainda que não o tenha dito – como um livro maldito. “El boxeador polaco” foi o momento – e o livro – onde se assistiu ao nascimento de Eduardo Halfon, lançando-o no universo da narrativa curta: “Só escrevo contos, mas juntá-los dá a aparência de um romance”. Foi neste livro que se começou a formar o projecto de um romance em marcha, “uma novela contínua” escrita por um contista que recusa qualquer género: “Não sei que género é, e não me importa. Quero que não haja géneros. A ideia de autoficção parece-me nefasta. Toda a ficção é autobiográfica. E toda a escrita é ficção”.
Tal como no caso de Sandro, a escrita de um livro começa “com uma imagem difusa”, e cada livro nasce de forma diferente. “Não posso generalizar o processo. Sou sempre engenheiro a não ser quando escrevo. Apenas no final se acende uma luz e então vejo”. Com “Canción”, o seu livro “mais matemático”, o Japão foi o ponto de partida e de chegada que o fez olhar para o seu lado libanês, depois de se ter interessado pelo rapto do seu avô. “Foi o sequestrador que me interessou, não o meu avô”. A terminar, Halfon desvendou o livro em que está a trabalhar, e que parte de um momento estranho e traumático da sua infância. Durante um acampamento de verão para meninos judeus, foram acordados por instrutores que se vestiram e comportaram como nazis. Foi como se um vento gélido tivesse entrado, de rompante, na sala. Em breve nas livrarias.
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