«Os golos são como o ketchup, quando aparece é tudo de uma vez». Esta analogia foi usada, na iminência da instalação de uma crise de concretização, por Cristiano Ronaldo em 2010, e talvez sirva para ilustrar, ainda que de forma condimentada, a construção de um primeiro romance, onde mais do que a força da técnica parece imperar a técnica da força – prometemos que isto não vai ser um texto sobre futebol.
Com moderação de Afonso Borges, Lucrecia Zappi e Rute Simões Ribeiro sentaram-se para discutir “A construção do romance”. Lucrecia Zappi, jornalista, tradutora e escritora brasileira, nasceu na Argentina e mudou-se para São Paulo aos 4 anos de idade. Estudou na Cidade do México e, também, em Amesterdão. Voltou depois ao Brasil, onde trabalhou como repórter do jornal Folha de S. Paulo, tirando (em Nova Iorque) um mestrado em Criação Literária.
Se, em “Onça Preta”, partiu de uma terra para si distante – a Bahia – para ficcionar sobre um lugar onde se exploravam diamantes, “um lugar abandonado, fantasma, agora um parque nacional”, “Agra”, o seu mais recente romance, foi de encontro a um fascínio pessoal pelo regionalismo brasileiro, resultando num “western norte-americano dentro das fronteiras de São Paulo. Uma história de ciúmes, universal, que fala da cerca, de proteger o que é nosso”.
Rute Simões Ribeiro foi, durante muitos anos, a editora dos seus próprios livros – sete no total (aqui no Deus Me Livro falámos de quatro deles). Isto até Afonso Borges os ter lido, fazendo depois a ponte com Simone Paulino, da Editora Nos, que acaba de lançar “A Breve História da Menina Eterna”, que segundo a autora é “o estudo da morte mas sem o peso”. Na construção do romance disse escrever por instinto, enquanto Lucrecia parte “sempre de uma obsessão, de uma frase que ecoa nos meus pensamentos. Muitas histórias surgem de boatos. Sou uma pessoa muito visual”. Quanto a esse monstro chamado primeiro romance, diz ser “algo a que chegamos como podemos chegar. A técnica vem a seguir”. O que a mais entusiasma é “brincar com os idiomas das diferentes personagens”, as suas delicadezas, ainda que, depois de ter escrito alguns contos em inglês, tenha dado por si a pensar: “Quem sou eu?”.
Relativamente à edição em nome próprio, após alguns anos sem sucesso a navegar no mundo dos originais passados de editora em editora, Rute Ribeiro disse ter-se tratado de “respeito pelo leitor mas sobretudo pelo texto”, indo buscar as fontes ao que a rodeia. O livro agora editado pela Nos, por exemplo, “nasceu de uma conversa que ouvi num autocarro”. Um livro ”pequeno e imenso” que, segundo a editora Simone Paulino, tem o sotaque literário português de que tanto gosta, e que “ficou vivendo em mim desde a primeira vez que o li. Acho que a Rute vai ser muito querida no Brasil”.
Depois da desistência de Zeruya Shalev, coube a Daniel Blaufuks ser o entrevistado único de Ana Sousa Dias, na mesa que abriu o Folio Autores deste edição dedicada ao Poder e que tinha, como título, “Dor”. Blaufuks que, nas palavras da moderadora, é “autor de vários livros e de muita reflexão. Para mim também é um ensaísta”.
Blaufuks escreveu “Não Pai” depois de ter sabido da morte do pai através de um e-mail, “um fim mais abrupto do que estava à espera. Foi mais o fecho de uma angústia do que propriamente dor, de uma história que me acompanhou ao logo da vida” e que, ao contrário do que esperava, não culminou com um duelo à moda de um western americano. “Prometo falar modestamente da dor”, disse.
Um livro que, abalando alguma crença pessoal, foi catártico: “Escrevi para mim. Nunca acreditei em livros de autoajuda, mas este foi-o para mim. A ausência do pai foi sempre um espinho. Agora consigo perceber como escrever nos sublima. Nao foi a morte que encerrou esta história, mas sim escrever sobre ela”.
Blaufuks percorreu a linha temporal familiar, tanto a materna como a paterna, falando de divórcios improváveis e fugas a uma previsível perseguição, que levou à constituição de uma família onde apenas havia uma mãe, algo banal hoje em dia. “Chamar dor a isto hoje e algo que parece um pouco banal”. Ou, ainda, do “não irmão” que, apesar de todo um historial familiar marcado pela perseguição, se tonou assessor de André Ventura no Parlamento. “É um exemplo de como a história não nos vacina”.
Falou-se ainda da “falta de empatia crescente do mundo”, de refugiados e de exílio, do lado que se escolhe quando não se é vítima, dos pequeninos holocaustos que nos vigiam, da diferença que é ser perseguido por questões de nascimento – cor de pele, país – e por aquilo que se escolhe ser ou fazer na vida, da “dor de perder o país, de perder o chão”, do cerco político que aperta cada vez mais, com a voz a ser dada a quem está contra as minorias, de vivermos num mundo global mas, ainda assim, de as guerras não nos tocarem todas da mesma forma.
Muito interessante foi a conversa sobre a apropriação de coisas que os outros criaram, que é também uma marca do trabalho de Blaufuks. “A apropriação faz parte de toda a arte contemporânea, talvez desde Marcel Duchamp. No meu caso trata-se de um acto de respeito para o que já existe, construindo sobre isso e criando algo de novo”. Um percurso que tem muito em comum com o de Sebald e o seu trabalho de preservação de memória e de questionamento da história, dando-se inversão do meio primordial de comunicação: Sebald escreve tendo como complemento a imagem, Blaufuks oferece-nos um retrato do mundo através de imagens pontuadas com texto.
A noite trouxe-nos, sob a batuta de Ricardo Alexandre, uma conversa sobre a “Moeda”, com dois ilustres convidados que mostraram ter jogo de cintura para o jogo económico: Paul Mason e Mariana Mortágua que, ainda que pendendo para lados diferentes da geografia política, concordam com a necessidade de uma nova abordagem económica para o mundo.
Para Paul Mason, nunca chegámos a recuperar da última grande crise, vivendo tempos em que “o dinheiro está a desestabilizar o capitalismo e a democracia em muitas partes do mundo”, dando razão a Marx quando disse que a última barreira ao capitalismo era o próprio capitalismo e dizendo que o carrossel do crédito terá de parar. Para Mason, a dívida continua por pagar tanto tempo depois: “Em vez de se pagarem as dívidas, de se reformular o sistema, foi criado mais dinheiro para manter esse mesmo sistema. Uma deliberada recessão global que visa impedir a distribuição da riqueza”. Numa curta lição de história, Paul Mason terminou com uma nota marcada pelo humor brit, comentando o aumento da taxa de interesse em nove vezes pelo Banco de Inglaterra: “O crédito é mais importante do que a cerveja, mas a verdade é que podemos deixar a cerveja mas não o crédito”.
Para Mariana Mortágua, “a finança invadiu todas as esferas da vida e substituiu o estado social”. Recordou o crash de 1929 e a depressão de 1933, que levaram aos limites do Estado à finança, algo que não aconteceu com a crise de 2008: “O que foi feito foi tentar salvar a finança, e não limitá-la”. Uma crise que levou a “uma disrupção entre o que o sistema prometia e aquilo que pode oferecer”, e que de acordo com a deputada vai encostando a esquerda à parede: “as soluções são proibidas pela União Europeia ou pelos mercados”. Algo que faz com que diga que vamos navegando entre o centro esquerda e a direita liberal, não fazendo grande distinção entre Macron e Costa. E quanto a soluções? “São preciso mobilizações sociais para mudar as regras e desarmadilhar a democracia”.
Paul Mason falou ainda do polo magnético da ideologista fascista, que relaciona com o facto de nos últimos quarenta anos nos termos tornado ideologicamente fascinados com o neoliberalismo, levando a um “egoísmo económico”. A partir do momento em que o mercado deixou de funcionar e do falhanço das ideologias, aumentou a procura da identidade e da exclusão em relação ao que é diferente, seja a cor de pele, a religião escolhida ou o país onde se nasce. “A Guerra Civil está a chegar, é esta a mensagem que passa”.
O exemplo da Grécia levou a algumas diferenças de opinião. Para Mason, antes de chegarmos a um novo momento grego há que preparar uma alternativa mais credível. “Não houve preparação para uma mudança”. Já Mortágua, para quem “a democracia demitiu-se de gerir a economia”, o exemplo da Grécia para “mostra o quão limitada é uma democracia onde mandam os mercados”, indo mais longe e falando da moeda única como “um projecto de institucionalização do neoliberalismo”. Sobre isto, Mason acrescentou que “o problema da zona europeia é não ter poder sobre a moeda”, e que “grande parte da classe média tem medo de soluções complicadas”. Ainda assim, e dando como exemplo o facto de o governo britânico estar a pagar parte do consumo de energia de cada cidadão, mostrou alguma esperança de que esta benesse possa estender-se a outras áreas da sociedade, como a saúde e a educação, indo ao encontro de uma mais justa distribuição da riqueza: “O momento está aberto para uma discussão com os tecnocratas”.
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