A expressão que dá título a este artigo – antes do acrescento dos parêntesis – pertence a Manuel António Pina, que, sobre esse diálogo infinito entre livro, autor e leitor, escreveu que «um texto literário nunca é algo acabado, é antes uma realidade instável e mutante, que está permanentemente a ser feita e refeita pelas leituras que suscita, incluindo as leitura que dele o próprio autor fizer». Uma expressão lançada por Carlos Vaz Marques, na abertura da mesa que decorreu, com casa cheia, sob o lema “Literatura – aproximação ou distanciamento”, reunindo dois ilustres convocados, sobretudo, pelo seu papel de vorazes leitores: Alberto Manguel e Pedro Mexia.
Numa edição do FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos que tem como tema o Outro, Carlos Vaz Marques convocou, como acontece quase sempre que se fala de Literatura, o nome do gigante Jorge Luis Borges, recordando o tema do duplo presente no conto O Outro, parte fundamental desse livro fundamental chamado “O Livro de Areia” – conto no qual o Outro é, afinal, o mesmo – e ainda assim tão diferente – Borges. Tudo para chegar à pergunta: será que, na Literatura, o leitor tem de escolher entre a aproximação e o distanciamento?
Pedro Mexia, que brincou dizendo que gostaria, ao estilo de um concerto rock e perante Manguel, fazer a primeira parte e ir depois para a bancada, destacou “a duplicidade da literatura enquanto experiência de aproximação e de distanciamento”, mostrando-se preocupado com “a procura quase insustentável de aproximação entre o leitor e o escritor”, bem como o julgamento moderno e a actualização histórica que faça com que, por exemplo, a temática africana com que Picasso nos havia seduzido seja agora apresentada, em nota crítica introdutória, como apropriação cultural. Algo que faz Mexia afirmar que, “infelizmente, a questão do distanciamento está em queda”.
Para Alberto Manguel, “a língua é o que faz quem somos”. O escritor e ensaísta bibliófilo, que doou à Câmara Municipal de Lisboa 40000 mil volumes que irão dar origem ao futuro Centro de Estudos da História da Leitura – do qual será director -, a inaugurar em 2022 com a missão de estudar a história da leitura, considera que existe uma confusão moderna entre os problema sociológicos e a natureza da criação: “A criação é ficção, a arte é ficção”. Para Manguel, a imposição de regras é prejudicial no duplo sentido, tanto para quem escreve como para quem lê, indo contra a definição do que é e deve ser a arte, uma ocupação com o seu quê de sedução: “A literatura é uma homenagem à poligamia, à descoberta do prazer: quantos mais melhor. A discussão tem de passar da censura para um campo livre, de diálogo e questionamento”.
Mas haverá, afinal, uma ética da leitura? “O leitor tem uma responsabilidade livre na interpretação, mas tem de ter acompanhada por uma ética na acção”, considera Manguel, recordando o assassinato de John Lennon por um homem que julgava ser Holden Caulfield, o protagonista do romance de Salinger intitulado “The Catcher in the Ry”.
Carlos Vaz Marques avançou de seguida para o terreno da auto-ficção, dominante de grande parte da ficção que se tem escrito nos últimos anos, tornando-se um filão para editoras e alimento gourmet para escritores. Para Manguel, no entanto, trata-se de “uma tendência muito velha”, algo experimentado há uma eternidade por gente como Dante ou Santo Agostinho. Ou, se quisermos, ainda mais para trás da linha temporal: “Mais pós-modernista que o épico de Gilgamesh é impossível”. Relativamente a esta categorização, Manguel aponta o dedo: “São os professores e os críticos de literatura que precisam dessas categorias para ensinar”. Para ele, é simplesmente como um romance do século XIX estar a ser escrito no século XXI.
Chegámos então a um lugar recorrente na vida destes dois ilustres e vorazes leitores, alimento para noites de abençoada insónia: a biblioteca. Pedro Mexia acredita que numa biblioteca pessoal, pelo menos para quem tem o vício da acumulação, é praticamente impossível manter as categorias estáticas. “Há uma série de acasos propensos à mudança”, disse, falando de processos algo inconscientes e, ainda assim, tão temporariamente lógicos, como colocar as biografias ao lado dos romances dos autores, transformando a biblioteca num lugar de afinidades. Algo que apenas é possível numa biblioteca pessoal, onde se habita um território relacional, ao contrário do espírito de serviço público e mais conservador da biblioteca colectiva. Manguel é também adepto desse diferenciação entre bibliotecas públicas e pessoais, mas fala de ambas como “uma aproximação ao livro mas também uma aproximação ao mundo. Um símbolo do espelho e da identidade de uma sociedade”, que funciona como reconhecimento e memória.
Marques chama a jogo Dom Quixote, puxando a conversa para a alienação do mundo via literatura. Pedro Mexia olha para a leitura ou a cinefilia no sentido da suspensão da descrença, fundamental para deles retirar o devido prazer, sem que isso implique a fusão dos planos da ficção e da realidade. “A alienação é óptima, mas não quando se acha que os livros e a vida são a mesma coisa”. Relativamente a Dom Quixote e à conversa sobre alienação, Manguel saca de um ás de trunfo: “Quixote causa uma alienação pela mentira do mundo. Um mundo de injustiças, de diferenças de classe, de pobreza. Nós não queremos ver, apenas Quixote”, rosto da ética de cavalaria.
E quanto à verdade? Será algo que deva ser procurado na literatura? “É uma mentira dizer que a literatura é uma mentira. Ou, como Cocteau diria, é uma mentira que diz a verdade”. Para Manguel, talvez o aspecto da literatura seja o de uma forma ambígua que aponta ao diálogo e à formulação de perguntas. Uma ambiguidade que faz com que cada tradutor encontre algo distinto no texto original, dica para voltarmos a recordar Borges que dizia que “toda a tradução é um rascunho do original”. Sobre a tradução, Pedro Mexia considera a língua “um mistério muito forte”, o que faz com que autores como O`Neill percam a graça na tradução ou que Puskin não pareça tão maravilhoso quando deixa de ser lido e ouvido em russo.
Em resposta a uma pergunta do público, sobre o incómodo ou a aversão potenciada pela literatura e se McEwan seria um desses escritores sensacionalistas, Mexia esteve em grande e falou na “diferença entre ser sensacionalista e sensacional”, palavra – a segunda – que poderá ser aplicada tanto a McEwan como ao realismo mágico. Seja como for, e mesmo tendo em conta um certo lado masoquista do leitor, este terá sempre do seu lado a decisão, temporal ou definitiva, de “não querer ler determinado livro para não ser agarrado pelo pescoço”.
A fechar esta incrível sessão, conduzida a bom porto pelo timoneiro Carlos Vaz Marques, Alberto Manguel destacou “o diálogo com os mortos que a literatura permite, mas também com os vivos”. Quem lê, lê-se (e, com sorte, terá um vislumbre do mundo).
Fotos: Folio
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FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos 2021
17 Outubro 2021
Mesa 7
Literatura – aproximação ou afastamento
Alberto Manguel conversa com Pedro Mexia
Moderação: Carlos Vaz Marques
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