Publicado pela primeira vez em 1957, “O Ângulo Raso” estava esgotado há largos anos, conhecendo agora uma reedição com o selo da Abysmo. Trata-se do livro que marcou a entrada da escritora Fernanda Botelho no universo do romance, seis anos após a sua estreia literária com a poesia e o livro “Coordenadas Líricas”. Como avançou João Paulo Cotrim, na apresentação que decorreu na recente edição do FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos, este é mais um passo para a publicação da obra integral de Fernanda Botelho pela Abysmo, o primeiro projecto do género levado a cabo pela editora. Uma nova edição que conta com o prefácio da professora Paula Morão, que coordena o estudo da obra de Fernanda Botelho no âmbito do projeto “Textualidades”, do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), e que surge após a publicação dos livros “Esta noite sonhei com Brueghel”, “A gata e a fábula”, “Lourenço é nome de jogral” e “Gritos da minha dança”. Para 2022 está prevista a primeira – e inédita – publicação de uma antologia de crónicas, dispersas pela imprensa portuguesa. Para João Paulo Cotrim, que destacou a qualidade do texto, a forma em como são construídas as personagens e as temáticas que atravessaram a sua obra, na qual o lado feminino desempenha um papel fulcral, trata-se de “uma autora muito importante, que merece ser lida e relida”.
Fernanda Botelho estreou-se como poetisa, mas acabou por se distinguir na literatura como romancista. Nasceu no Porto, em 1926, e morreu em Lisboa, em 2007, tendo deixado uma obra extensa que lhe valeu vários prémios ao longo de mais de meio século de carreira, como o Grande Prémio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores, o Prémio Camilo Castelo Branco, o Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários ou o Prémio PEN Clube Português de Ficção. Estudou Filologia Clássica nas Universidades de Coimbra e Lisboa, cidade na qual se fixou. Pertenceu ao grupo de fundadores da revista Távola Redonda, que reuniu escritores como David Mourão-Ferreira, Ruy Cinatti e Alberto de Lacerda. Traduziu autores como Natalie Sarraute, J.M.G. Le Clézio, Nina Berberova, Hervé Bazin, Michel Tournier, Max Frisch, Stendhal ou Dante. “Gritos da Minha Dança” foi o último livro publicado em vida da escritora. Em 1989, recebeu o grau de Grande-Oficial da Ordem do Mérito.
Cabe a Joana Botelho, presidente da Associação Gritos da Minha Dança e neta de Fernanda Botelho, a gestão do espólio, bem como a organização, em cooperação com o Município do Cadaval, concelho do distrito de Lisboa onde a escritora residiu nos seus últimos anos, da Semana das Artes, dirigida sobretudo às escolas. O lugar de criação da escritora deu, entretanto, lugar à Casa-Memória Fernanda Botelho, situada na aldeia da Vermelha, concelho do Cadaval, que poderá ser visitada mediante marcação prévia. A recusa de Joana Botelho em transferir o espólio para a Biblioteca Nacional deveu-se a querer manter a obra na atmosfera da casa de família, “um encontro de gerações e que une duas famílias”, possibilitando compreender o lugar da criação onde a escritora vivia, escrevia e se recolhia e, também, envolver a comunidade local – o Programa das Artes Fernanda Botelho convida pessoas ligadas ao design, à literatura e a outras artes para partilhar a sua experiência com a comunidade educativa. Do arquivo documental, cujo tratamento contou com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, estão já inventariados cerca de 7000 documentos. Joana Botelho refere, do contacto próximo com a avó que dizia ter entrado na escrita por instinto, “a transmissão de valores incontornáveis e o gosto pela curiosidade. Mas também a importância da subjectividade, a inquietude de quem nos somos. Esta é uma característica que nos une”.
José Manuel dos Santos, que se tornou amigo de Fernanda Botelho após ter lido os seus livros, destacou o cuidado com os textos de apresentação destas novas edições, “a fazer lembrar as fichas críticas que a Fernanda escrevia para livros que acabavam por ser comprados para as carrinhas da Gulbenkian”. Escritora que, segundo ele, era dotada de uma “inteligência irónica discreta”, bem como um amor familiar pouco vulgar no mundo das letras. Para além da inteligência, da serenidade, da argúcia, de uma ironia inseparável da curiosidade e do conhecimento do mundo, José Manuel dos Santos referiu o seu pouco exibicionismo, algo que terá contribuído para não ter sido uma autora tão falada, apesar de os seus livros terem sido levados em ombros pela maioria da crítica literária da época. “Tinha um flirt com a descrição, e quando se expunha era quase sempre de forma irónica”. Especificamente em relação a “O Ângulo Raso”, diz conter já “todo o futuro da obra dela”, mantendo a sua actualidade mais de setenta anos após a sua publicação original.
José Manuel dos Santos trouxe para a conversa a escritora Nathalie Sarraute, que Fernanda Botelho traduziu por altura da escrita de “O Ângulo Raso”, e que tem um livro intitulado “A Era da Suspeita”, que encaixa no cenário português dos anos 1950, quando estavam no ar os primeiros sinais de que a ditadura poderia estar a chegar ao fim. “O tema do vazio da sociedade, dos valores, aparece aí e será constante na obra da Fernanda”, que considera ser uma escritora portuguesa pós-moderna, muito visual e com um olhar cinematográfico, que pôs fim “ao pacto entre o autor, o narrador e as personagens e assumiu a ambiguidade, as estratégias circulares. O direito tem sempre um avesso”. Após falar da ambiguidade de Fernanda Botelho entre o desejo de conservação da memória e o apelo para fazer tábua rasa, brincou ainda com o facto de, na pesquisa googliana, surgirem três Fernandas Botelho – a matemática, a especialista em ervas e a escritora -, podendo cada uma delas ser a mesmq. O tema central, esse, defende ter sido o da liberdade, “não apenas no sentido abstracto e político, mas na forma como a podemos usar para construir relações com os outros”. Sem esquecer o modo como o amor nos pode dar e tirar essa mesma liberdade.
Paula Morão, que reservou para si o texto de apresentação de “O Ângulo Raso”, destacou a possibilidade de os livros de Fernanda Botelho serem, também, uma porta aberta para o retrato de uma época – e, no caso desta estreia no romance, de um retrato exemplar da cidade de Lisboa, mas também sobre a província e a ligação à saúde, física e mental. Presentes nesta obra iniciática estão também, segundo Paula Morão, diversas referências literárias, que serão também transversais a toda a sua obra. Uma obra que “exige que o leitor esteja atento e desperto“. Falou-se depois desta Ângulo Raso que surge como um livro dentro do livro, um teorema que pede demonstração e que, recorda Joana Botelho, será mencionado no livro derradeiro de Fernanda Botelho, fechando assim um tratado literário com muita matemática e que oferece uma leitura simbólica da vida.
Fotos: FOLIO
2 Commentários
Muito obrigada por este registo da nossa sessão Fernanda Botelho no Folio! É bom saber que tivémos espectadores tão atentos. Paula Morão.
Muito obrigado, Paula. Foi muito bom poder conhecer a obra da Fernanda Botelho desta forma. Parabéns pelo vosso trabalho e dedicação.