• Mil Folhas
  • Música Com Cabeça
  • Cine ou Sopas
deusmelivro
Joana Botelho, Fernanda Botelho, Paula Morão, José Manuel dos Santos, João Paulo Cotrim, Abysmo, Folio, Folio 2021, O Ângulo Raso
Mil Folhas 2

Folio 2021: num lugar entre a matemática, as ervas e a literatura, nasceu um ângulo raso

Por Pedro Miguel Silva · Em 29/10/2021

Publicado pela primeira vez em 1957, “O Ângulo Raso” estava esgotado há largos anos, conhecendo agora uma reedição com o selo da Abysmo. Trata-se do livro que marcou a entrada da escritora Fernanda Botelho no universo do romance, seis anos após a sua estreia literária com a poesia e o livro “Coordenadas Líricas”. Como avançou João Paulo Cotrim, na apresentação que decorreu na recente edição do FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos, este é mais um passo para a publicação da obra integral de Fernanda Botelho pela Abysmo, o primeiro projecto do género levado a cabo pela editora. Uma nova edição que conta com o prefácio da professora Paula Morão, que coordena o estudo da obra de Fernanda Botelho no âmbito do projeto “Textualidades”, do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), e que surge após a publicação dos livros “Esta noite sonhei com Brueghel”, “A gata e a fábula”, “Lourenço é nome de jogral” e “Gritos da minha dança”. Para 2022 está prevista a primeira – e inédita – publicação de uma antologia de crónicas, dispersas pela imprensa portuguesa. Para João Paulo Cotrim, que destacou a qualidade do texto, a forma em como são construídas as personagens e as temáticas que atravessaram a sua obra, na qual o lado feminino desempenha um papel fulcral, trata-se de “uma autora muito importante, que merece ser lida e relida”.

Joana Botelho, Fernanda Botelho, Paula Morão, José Manuel dos Santos, João Paulo Cotrim, Abysmo, Folio, Folio 2021, O Ângulo Raso

Fernanda Botelho estreou-se como poetisa, mas acabou por se distinguir na literatura como romancista. Nasceu no Porto, em 1926, e morreu em Lisboa, em 2007, tendo deixado uma obra extensa que lhe valeu vários prémios ao longo de mais de meio século de carreira, como o Grande Prémio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores, o Prémio Camilo Castelo Branco, o Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários ou o Prémio PEN Clube Português de Ficção. Estudou Filologia Clássica nas Universidades de Coimbra e Lisboa, cidade na qual se fixou. Pertenceu ao grupo de fundadores da revista Távola Redonda, que reuniu escritores como David Mourão-Ferreira, Ruy Cinatti e Alberto de Lacerda. Traduziu autores como Natalie Sarraute, J.M.G. Le Clézio, Nina Berberova, Hervé Bazin, Michel Tournier, Max Frisch, Stendhal ou Dante. “Gritos da Minha Dança” foi o último livro publicado em vida da escritora. Em 1989, recebeu o grau de Grande-Oficial da Ordem do Mérito.

Joana Botelho, Fernanda Botelho, Paula Morão, José Manuel dos Santos, João Paulo Cotrim, Abysmo, Folio, Folio 2021, O Ângulo Raso

Cabe a Joana Botelho, presidente da Associação Gritos da Minha Dança e neta de Fernanda Botelho, a gestão do espólio, bem como a organização, em cooperação com o Município do Cadaval, concelho do distrito de Lisboa onde a escritora residiu nos seus últimos anos, da Semana das Artes, dirigida sobretudo às escolas. O lugar de criação da escritora deu, entretanto, lugar à Casa-Memória Fernanda Botelho, situada na aldeia da Vermelha, concelho do Cadaval, que poderá ser visitada mediante marcação prévia. A recusa de Joana Botelho em transferir o espólio para a Biblioteca Nacional deveu-se a querer manter a obra na atmosfera da casa de família, “um encontro de gerações e que une duas famílias”, possibilitando compreender o lugar da criação onde a escritora vivia, escrevia e se recolhia e, também, envolver a comunidade local – o Programa das Artes Fernanda Botelho convida pessoas ligadas ao design, à literatura e a outras artes para partilhar a sua experiência com a comunidade educativa. Do arquivo documental, cujo tratamento contou com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, estão já inventariados cerca de 7000 documentos. Joana Botelho refere, do contacto próximo com a avó que dizia ter entrado na escrita por instinto, “a transmissão de valores incontornáveis e o gosto pela curiosidade. Mas também a importância da subjectividade, a inquietude de quem nos somos. Esta é uma característica que nos une”.

Joana Botelho, Fernanda Botelho, Paula Morão, José Manuel dos Santos, João Paulo Cotrim, Abysmo, Folio, Folio 2021, O Ângulo Raso

José Manuel dos Santos, que se tornou amigo de Fernanda Botelho após ter lido os seus livros, destacou o cuidado com os textos de apresentação destas novas edições, “a fazer lembrar as fichas críticas que a Fernanda escrevia para livros que acabavam por ser comprados para as carrinhas da Gulbenkian”. Escritora que, segundo ele, era dotada de uma “inteligência irónica discreta”, bem como um amor familiar pouco vulgar no mundo das letras. Para além da inteligência, da serenidade, da argúcia, de uma ironia inseparável da curiosidade e do conhecimento do mundo, José Manuel dos Santos referiu o seu pouco exibicionismo, algo que terá contribuído para não ter sido uma autora tão falada, apesar de os seus livros terem sido levados em ombros pela maioria da crítica literária da época. “Tinha um flirt com a descrição, e quando se expunha era quase sempre de forma irónica”. Especificamente em relação a “O Ângulo Raso”, diz conter já “todo o futuro da obra dela”, mantendo a sua actualidade mais de setenta anos após a sua publicação original.

José Manuel dos Santos trouxe para a conversa a escritora Nathalie Sarraute, que Fernanda Botelho traduziu por altura da escrita de “O Ângulo Raso”, e que tem um livro intitulado “A Era da Suspeita”, que encaixa no cenário português dos anos 1950, quando estavam no ar os primeiros sinais de que a ditadura poderia estar a chegar ao fim. “O tema do vazio da sociedade, dos valores, aparece aí e será constante na obra da Fernanda”, que considera ser uma escritora portuguesa pós-moderna, muito visual e com um olhar cinematográfico, que pôs fim “ao pacto entre o autor, o narrador e as personagens e assumiu a ambiguidade, as estratégias circulares. O direito tem sempre um avesso”. Após falar da ambiguidade de Fernanda Botelho entre o desejo de conservação da memória e o apelo para fazer tábua rasa, brincou ainda com o facto de, na pesquisa googliana, surgirem três Fernandas Botelho – a matemática, a especialista em ervas e a escritora -, podendo cada uma delas ser a mesmq. O tema central, esse, defende ter sido o da liberdade, “não apenas no sentido abstracto e político, mas na forma como a podemos usar para construir relações com os outros”. Sem esquecer o modo como o amor nos pode dar e tirar essa mesma liberdade.

Joana Botelho, Fernanda Botelho, Paula Morão, José Manuel dos Santos, João Paulo Cotrim, Abysmo, Folio, Folio 2021, O Ângulo Raso

Paula Morão, que reservou para si o texto de apresentação de “O Ângulo Raso”, destacou a possibilidade de os livros de Fernanda Botelho serem, também, uma porta aberta para o retrato de uma época – e, no caso desta estreia no romance, de um retrato exemplar da cidade de Lisboa, mas também sobre a província e a ligação à saúde, física e mental. Presentes nesta obra iniciática estão também, segundo Paula Morão, diversas referências literárias, que serão também transversais a toda a sua obra. Uma obra que “exige que o leitor esteja atento e desperto“. Falou-se depois desta Ângulo Raso que surge como um livro dentro do livro, um teorema que pede demonstração e que, recorda Joana Botelho, será mencionado no livro derradeiro de Fernanda Botelho, fechando assim um tratado literário com muita matemática e que oferece uma leitura simbólica da vida.

 

Fotos: FOLIO

AbysmoFernanda BotelhoFOLIOFolio 2021Joana BotelhoJoão Paulo CotrimJosé Manuel dos SantosO Ângulo RasoPaula Morão

Pedro Miguel Silva

Pode Gostar de

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors, Mil Folhas

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista, Mil Folhas

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular, Mil Folhas

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

2 Commentários

  • Paula Morão comentou: 30/10/2021 at 21:59

    Muito obrigada por este registo da nossa sessão Fernanda Botelho no Folio! É bom saber que tivémos espectadores tão atentos. Paula Morão.

    Resposta
    • Pedro Miguel Silva comentou: 02/11/2021 at 09:22

      Muito obrigado, Paula. Foi muito bom poder conhecer a obra da Fernanda Botelho desta forma. Parabéns pelo vosso trabalho e dedicação.

      Resposta

    Deixe uma opinião Cancelar

    Siga-nos aqui

    Follow @Deus_Me_Livro
    Follow on Instagram

    Mil Folhas

    • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors,

      Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

      08/05/2025
    • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista,

      Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

      08/05/2025
    • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular,

      “O Som da Mentira” | Amy Tintera

      07/05/2025
    • Dentro da Tenda, Lucie Lučanská, Deus Me Livro, Crítica, Planeta Tangerina,

      “Dentro da Tenda” | Lucie Lučanská

      07/05/2025
    • Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria, Mariana Enriquez, Deus Me Livro, Crítica, Quetzal,

      “Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria” | Mariana Enriquez

      30/04/2025
    Acha o Deus Me Livro diferente? CLIQUE AQUI.

    Archives

    • May 2025
    • April 2025
    • March 2025
    • February 2025
    • January 2025
    • December 2024
    • November 2024
    • October 2024
    • September 2024
    • August 2024
    • July 2024
    • June 2024
    • May 2024
    • April 2024
    • March 2024
    • February 2024
    • January 2024
    • December 2023
    • November 2023
    • October 2023
    • September 2023
    • August 2023
    • July 2023
    • June 2023
    • May 2023
    • April 2023
    • March 2023
    • February 2023
    • January 2023
    • December 2022
    • November 2022
    • October 2022
    • September 2022
    • August 2022
    • July 2022
    • June 2022
    • May 2022
    • April 2022
    • March 2022
    • February 2022
    • January 2022
    • December 2021
    • November 2021
    • October 2021
    • September 2021
    • August 2021
    • July 2021
    • June 2021
    • May 2021
    • April 2021
    • March 2021
    • February 2021
    • January 2021
    • December 2020
    • November 2020
    • October 2020
    • September 2020
    • August 2020
    • July 2020
    • June 2020
    • May 2020
    • April 2020
    • March 2020
    • February 2020
    • January 2020
    • December 2019
    • November 2019
    • October 2019
    • September 2019
    • August 2019
    • July 2019
    • June 2019
    • May 2019
    • April 2019
    • March 2019
    • February 2019
    • January 2019
    • December 2018
    • November 2018
    • October 2018
    • September 2018
    • August 2018
    • July 2018
    • June 2018
    • May 2018
    • April 2018
    • March 2018
    • February 2018
    • January 2018
    • December 2017
    • November 2017
    • October 2017
    • September 2017
    • August 2017
    • July 2017
    • June 2017
    • May 2017
    • April 2017
    • March 2017
    • February 2017
    • January 2017
    • December 2016
    • November 2016
    • October 2016
    • September 2016
    • August 2016
    • July 2016
    • June 2016
    • May 2016
    • April 2016
    • March 2016
    • February 2016
    • January 2016
    • December 2015
    • November 2015
    • October 2015
    • September 2015
    • August 2015
    • July 2015
    • June 2015
    • May 2015
    • April 2015
    • March 2015
    • February 2015
    • January 2015
    • December 2014
    • November 2014
    • October 2014
    • September 2014
    • August 2014
    • July 2014
    • Contacto