Ficou instalado no The Literary Man Hotel durante a sua passagem pelo FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos, mas foi sobre “Grand Hotel Europa” (Porto Editora, 2021) – tradução de Maria Leonor Raven – que estivemos à conversa com Ilja Leonard Pfeijffer, autor holandês que, desde 2008, se mudou para a cidade italiana de Génova. Um livro com espírito metafórico que cruza o romance com uma falsa autobiografia, num digno enterro do velho continente onde se fala de migrações, de turismo e de Caravaggio, uma sombra que carrega consigo o passado imenso da Europa e que une cada personagem num derradeiro e nostálgico abraço.
Logo de entrada, já devidamente instalado no Grand Hotel Europa, partilha com o leitor que “a principal razão por que vim para aqui é a esperança que tenho em encontrar o tempo para respostas”. Saiu de lá – e deste livro – com algumas?
Gosto que me faça a pergunta como se fosse eu o protagonista. Claro que o protagonista do livro se chama Ilja Leonard Pfeijffer, como eu – o nome é bastante revelador -, mas não sou eu. De qualquer forma, este Ilja acaba por encontrar, no final, algumas respostas. O exercício de reconstruir a sua relação e o passado com Clio fá-lo compreender o que correu mal, o que leva a um final ambíguo e aberto onde decide rumar a Abu Dabi – isto depois de encontrar o quadro de Caravaggio de Maria Madalena no Deserto. O que o faz perceber que, tal como Maria Madalena, poderá cumprir também a sua própria penitência. Algo mudou, portanto, entre a primeira e a última frase do livro.
Numa época em que muito se insiste em transformar a literatura em categorias, farta-se de brincar com isso logo na forma em como diz que, sendo escritor, teria de pensar a dado momento em alguma forma de publicação – mas que isso ficaria para mais tarde. O que é, afinal, este “Grand Hotel Europa”? Um guia anti-turístico? Um postal ilustrado da velha Europa? Um romance autobiográfico com um toque ficcional? Um policial artístico?
O livro pode ser tudo isso, não penso ser necessário escolher uma categoria. Quer ser todas essas coisas mas é, em primeiro lugar, um romance sobre a identidade europeia, com raízes na minha própria experiência pessoal. Há treze anos mudei-me da Holanda para a Itália, o que me fez mudar enquanto pessoa. Uma dessas mudanças foi que, gradualmente, me comecei a sentir um pouco menos holandês. Outra mudança foi começar a sentir-me um pouco mais italiano. Mas, mais importante do que isso, comecei a sentir-me mais europeu. O que me levou a pensar em perguntas como estas: o que significa isso, ser europeu? O que pode ser a identidade europeia? São precisamente estas interrogações pessoais que estão na raiz do romance. E quando pensamos no que poderá significar ser europeu, concluímos que tem tudo a ver com o passado, que nos cerca por todos os lados. Estamos a ter esta conversa no centro histórico de Óbidos, portanto esse passado é tangível. Está no coração da identidade europeia. E é um passado que pode ser vendido, o que nos leva ao turismo. Daí este ser parte de um romance sobre a identidade europeia, como consequência desse passado que está em todo o lado.
O hotel parece servir como uma metáfora descarada ao triunfo do capitalismo, ao triunfo das potências orientais e, de certa forma, à morte da velha Europa. Resta à Europa, “enquanto região maravilhosa e marginalizada”, tornar-se “o jardim do mundo”?
É importante perceber que o turismo não é um fenómeno inócuo. A maioria das pessoas não percebe isso, vê-o apenas como um meio fácil de fazer dinheiro. Mas não é assim. O turismo destrói muita coisa – as infraestruturas sociais da cidade, o futuro dos seus habitantes -, e é importante que nos apercebamos disso. E, no momento em que o fizermos, será importante fazer uma escolha. É isto o que realmente queremos? Que toda a Europa se torne numa gigantesca Veneza? Se assim for, basta simplesmente continuar como temos feito até agora, seguindo as regras do mercado livre. Se decidirmos que queremos ser o jardim do mundo, podemos transformá-lo num jardim maravilhoso. Mas tem de ser uma decisão muito consciente. Se, por outro lado, a escolha for outra, temos de fazer algo sobre isso, o que não é fácil. Terá de se interferir com o mercado livre, e aí torna-se uma questão política. E, mais importante, significa que teremos de pensar numa espécie de alternativa. Não podemos simplesmente parar com o turismo em Veneza, porque não existe qualquer alternativa a isso. Por isso é necessário pensar em alternativas a longo prazo. O grande alcance do livro é, em primeiro lugar, lançar um alerta de que o turismo não é inócuo.
Outro dos temas que atravessam este seu romance tem a ver com o lado mais desumano do projecto europeu – e não apenas europeu -, incapaz de lidar com a emigração, cavando um fosso cada vez maior entre pobres e ricos e assistindo ao surgimento dos muitos populismos de direita, que vão tomando conta do governo de alguns países. O futuro político, social e humano da Europa está em risco?
O livro é uma declaração de amor à Europa, à sua cultura e à sua identidade. Em paralelo está também o projecto europeu, de reunificação, e há também, a certa altura do livro, uma declaração de amor à União Europeia. Estou ciente de que isso talvez não seja muito moderno, mas penso que se trata de um dos melhores, mais bonitos e mais corajosos projectos em que já se pensou. Claro que é lento, imperfeito e exige muito trabalho mas, ainda assim, é um projecto muito necessário. Não há simplesmente uma alternativa, mas neste momento o futuro europeu está em risco, porque chegámos a um momento da História em que é urgente redefinir o papel da Europa num mundo globalizado. Viemos de um período no qual diferentes nações da Europa governaram o mundo. Perdemos as nossas colónias e, em boa verdade, estamos bem melhor assim, mas não somos mais a única super-potência mundial. E temos de viver com isso. O que torna claro que apenas uma Europa unificada terá uma oportunidade de desempenhar um papel importante entre todas estas super-potências.
Diz no livro que “a migração é a essência do ser humano”, mas o que temos visto com esta vaga de migrações é talvez o pior lado do ser humano, com as fronteiras a serem fechadas e uma incapacidade de lidar com este desespero de quem procura a sobrevivência.
Tive uma noção clara disso quando estive em Malta, uma outra Lampedusa, um lugar onde os africanos chegam nos seus pequenos barcos. Durante a semana em que lá estivemos não vimos uma única pessoa negra, o que não deixa de ser estranho. Mas basta pesquisar um pouco para perceber que se trata de uma política deliberada do governo maltês: manter os emigrantes afastados e longe da vista, porque podem dar uma má imagem ao turismo. De um lado estão os turistas brancos e ricos, à procura do passado e dos monumentos e, para não os assustar, há que manter afastados os pobres e negros viajantes, que chegam em busca de um futuro melhor. Este contraste é muito cínico. É importante perceber que as migrações não são algo que possamos travar. Eles irão continuar a chegar. Se compreendêssemos algo sobre o puro desespero desta gente perceberíamos que não se deixarão travar pelas leis que os países decidam escrever. Talvez este seja o momento de pensar de outra forma. Se eles vão continuar a chegar, talvez o melhor seja pensar em formas de os inserir nas nossas sociedades, em vez de perder tempo e energia a tentar travá-los – o que não irá resultar. Na verdade, acho que precisamos de emigrantes. A Europa é um velho continente, seja pelo passado ou pela população envelhecida – não fazemos bebés suficientes. Quem irá pagar os hospitais, a segurança social? Parte da resposta é bater à porta do sul, do Mediterrâneo.
E como vê o renascer dos populismos nesta Europa envelhecida? Diz, a dado momento, que terá a ver com uma certa ideia de nostalgia.
Quando pensamos no Brexit, por exemplo, é pura nostalgia. É querer acertar os relógios para aquele momento do tempo em a Grã Bretanha era importante e poderosa. Mas claro que as coisas não funcionam dessa forma. Muitos dos populistas europeus prometem o regresso aos bons velhos tempos. Sairemos da Europa, voltaremos às liras ou às pesetas, fechamos as fronteiras e tudo vai ficar bem. Isto é uma promessa nostálgica e que não passa, claro, de pura ficção. Este passado nunca existiu realmente, e nunca será possível regressar a isso.
Caravaggio, que aparece no livro alimentando o seu lado mais misterioso, é descrito de forma pouco abonatória em termos de personalidade, um assassino, putanheiro, criminoso violento que, muito provavelmente, seria “o maior pecador que andava por aí ao cimo da terra”, apesar do apelo religioso. Nos dias de hoje, onde impera o revisionismo histórico do aqui e agora e a cultura do cancelamento, Caravaggio ia deixar de poder pintar?
A cultura do cancelamento pode ser bem mais violenta do que isso. Caravaggio pode ser cancelado mesmo que tenha vivido há quinhentos anos atrás. Quando as pessoas descobrirem a sua verdadeira biografia, podem tentar tirá-lo para fora dos museus. Aconteceu a muitos escritores e pintores. Não penso que essa seja a resposta, claro. Precisava de Caravaggio para o livro, porque todas as personagens têm, de uma forma ou de outra, uma ligação ao passado. Isto é válido para todos os hóspedes do Grand Hotel Europa, mas também para o protagonista e para Clio. Quando está a pensar em escrever sobre a sua relação com Clio, percebe que os momentos em que foram mais felizes foram aqueles em que estiveram à procura de resolver um crime ocorrido em 1610, quando puderam tirar umas férias com vista para o passado.
Aproveitando o embalo de Caravaggio, há um apontamento muito cáustico à arte moderna, aqui tendo como pano de fundo a Bienal: “…uma forma de masturbação. É ferro-velho auto-referencial que, tal como o urinol de Duschamps, precisa do contexto museal. Falta-lhe fantasia e é, sobretudo, arte malfeita”. A arte moderna é uma fraude?
Penso que a maioria da arte moderna é uma fraude. No livro há, também, um contraste com Damien Hirst, um artista muito interessante, porque brinca com o passado fazendo com que as suas estátuas pareçam velhas de propósito. É uma brincadeira com a ideia de que alguma coisa, para ser valiosa, tem de ser antiga. Mas a maioria da arte moderna, e no livro isso surge com a visita à Bienal, é feita de artistas que, na sua grande maioria, parecem temer a eternidade. É tudo tão extremamente mal feito que parece estar a cair aos bocados. É arte que nenhum museu pode conservar, que não conseguimos imaginar que esteja de pé daqui a um século – provavelmente irá cair dentro de um ano. Dá ideia de que o artista perdeu o seu caminho, que tem medo de deixar algo para a eternidade porque receia não ter nada a dizer. E isto tem muito a ver com o peso da tradição da arte europeia, que torna difícil para um artista fazer algo de novo. A arte moderna está em crise neste momento.
Fotos: FOLIO
2 Commentários
Gostei muito da entrevista. Já agora teria sido simpático mencionar o nome da tradutora que lhe permitiu ler o livro.
Muito bem lembrado, já foi acrescentado no texto. Obrigado pela tradução! Cumprimentos.