Juan Gabriel Vásquez é aquilo a que nos habituámos a chamar, entre o tom cerimonioso e o forte apreço, “um senhor”. Alguém que, na maior parte dos dias, ostenta um fato de bom corte, uma pose bem medida, um discurso ponderado, uma educação primorosa e um raciocínio brilhante. Na literatura, num percurso do qual fazem parte seis romances – cinco deles publicados em Portugal – e dois volumes de contos, é à memória – e à literatura – que cabe o papel de organizador de jogo, partindo Vásquez das histórias e dos dilemas particulares – muitas vezes invisíveis – para chegar à universalidade do pulsar humano, aos acontecimentos fundamentais que a História não tem mecanismos para tratar: os paradoxos, as divisões e os contrastes que animam e com os quais se contorce o ser humano. Após um primeiro encontro em 2017, o Deus Me Livro voltou à conversa com o escritor colombiano na recente edição do FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos. Desta vez sobre “Olhar para trás” (Alfaguara, 2021), um romance no qual se olha para o modo como ideologia de Mao, Castro e outros ideólogos do comunismo mudou, para sempre e não pelas melhores razões, a vida e a sociedade colombianas, transformando o país num lugar no qual a violência parece ser um sentimento sem retorno.
Após seis romances, podemos sugerir que o seu processo criativo e de questionamento através da escrita segue as palavras do poeta castelhano Antonio Machado? “Faz-se caminho andando e ao olhar para trás”. Qual o peso da memória na sua relação com a literatura?
Todos os romances que escrevi até à data, e atrever-me-ia a dizer que também a maior parte dos contos, partilham uma obsessão central: a do passado como um lugar que só pode ser recuperado através da narração. O passado é um espaço estranho, cuja característica principal é a de apenas poder ser explorado quando sobre ele se contam histórias. E isso é problemático, porque o exercício da memória converte-se num exercício político. Ter a possibilidade de contar uma história sobre o passado é, de alguma forma, poder controlá-lo, modificá-lo. No meu país, hoje mais do que nunca, a narração do passado é uma arma política. Os governos, os partidos, as figuras poderosas, trataram sempre de controlar o relato sobre o passado, e tem assim cabido à literatura o papel de questionar essas versões do poder. Os meus romances, entre muitas outras coisas, são uma tentativa de contar uma versão do passado e da memória que não existe na História, no jornalismo ou na verdade oficial. De certa forma, recuperar para os cidadãos o direito de contar a sua experiência enquanto país. “Olhar para trás” é um exercício da memória da minha personagem, Sergio Cabrera, que recorda a vida do seu pai e a sua própria vida, até à sua entrada e saída dos movimentos armados na Colômbia. Algo que, para mim, é extremamente importante, porque significa colocar mais uma peça no puzzle da história colombiana.
Não pude deixar de pensar em ”A Quinta dos Animais”, de George Orwell, ainda que aí naveguemos pelo território da fábula com muita ironia à mistura. Seja como for, parece haver em “Olhar para trás” um enterro definitivo do comunismo enquanto ideologia salvadora. É uma leitura válida?
O romance interessa-se, e isto é algo que sempre me interessou, com a ideia de causa como algo pelo qual o ser humano decide sacrificar algo, seja o amor, a família, o bem-estar – ou até mesmo a própria vida – por uma causa abstracta. Nas minhas primeiras conversas com Sergio Cabrera, quando me falava da sua relação com o Maoismo que havia aprendido na China ainda em criança, mais tarde com a sua entrada na guerrilha maoista colombiana – que se estendeu até à sua saída após a decepção, o desencanto e as feridas -, pensava que a história de Sergio era, também, a história da nossa relação com o grande relato que foi o marxismo. Jean François Lyotard, filósofo francês, dizia que a modernidade tinha começado quando passámos de contar os grandes relatos para os pequenos relatos privados. Interessava-me muito esta ideia do grande relato do comunismo enquanto estrutura que deu forma à vida latino-americana que, a partir dos anos 1950, foi marcada pela nossa relação com o marxismo e o comunismo. Algo que teve consequências graves que duram até hoje, sobre as quais estamos ainda a reflectir nos dias de hoje. A guerra que estamos a tentar terminar, isto depois da assinatura há cinco anos atrás dos acordos de paz de Havana, é uma guerra relacionada com a chegada das ideias do marxismo, da revolução cubana e do surgimento dos movimentos armados. É como se, cinquenta, sessenta, setenta anos depois, estejamos ainda a tratar de perceber o que se passou, e qual é a nossa relação com essa ideologia.
O livro expressa bem, sobretudo através do olhar de Sergio e do seu desencanto, o falhanço de Mao. Uma desigualdade que, entre muitos episódios do livro, se vê expressa na ida da Elena e do Fausto para a China, onde acabam por ficar num hotel que é quase um país dentro de um país.
O Sergio do livro vem directamente daquilo que ele me contou. A partir disso fiz um exercício de interpretação, tratei de me meter na sua consciência e nas suas emoções, mas os factos apresentados são os dele. E Sergio tem uma visão dessa época e da sua própria vida como um lugar de muitas contradições. Ele sente isso, mas sente-o sem mostrar qualquer desejo de vingança ou procurando defender-se dos erros que cometeu no passado.
Algo que o seu pai provavelmente não teria.
Sim. Há uma tensão que, para mim, foi um dos motivos maiores para escrever este livro, porque sempre me interessaram as tensões entre pais e filhos. E aqui havia uma tensão muito grande. A relação de Sergio com o pai foi sempre foi muito dividida, muito esquizofrénica. Por um lado, continua a dizer que deve tudo ao seu pai: o seu ofício, a sua arte, a sua concepção do cinema e do teatro. Ao mesmo tempo, está consciente de que parte do legado do seu pai é obscuro: a sua relação com as ideias comunistas, a militância e todas as consequências negativas que vieram disso. É uma relação ambígua, tensa e contraditória, um terreno perfeito para o romance.
Ao contrário do pai, Sergio vai sentindo na pele o desencanto da revolução. Em Paris, depois de ter deixado para trás a China e perante o entusiasmo em sua volta com os rumores de uma transformação do mundo pelo comunismo de Mao, pensa em surdina “nos homens e nas mulheres humilhados em público, nas cabeças baixas, nos chapéus com um metro de altura que acusavam o portador de cumplicidade com o capitalismo, nos letreiros pendurados ao pescoço com outras acusações em letras grandes – déspotas, latifundiários, simpatizantes do inimigo, elementos dos bandos contra-revolucionários -, e recordou os museus e os templos arrasados por multidões violentas e as notícias de fuzilamentos que chegavam do campo, das quais só muito poucos ficavam a par”. Já David, um fervoroso seguidor da Revolução que se vê preso e desumanizado por ela, reage com fúria ao comentário do filho de que a Revolução Cultural havia sido a pior coisa que tinha acontecido à família: “A culpa não é da revolução nem do comunismo”. De quem foi, afinal, a culpa? E como podemos olhar para algo de forma tão contraditória?
Essa é uma das razões que justificam o género do romance. Não creio que a história, a historiografia, possam contar-nos sobre estas contradições, sobre a capacidade dos seres humanos para o auto-engano. A historiografia pode contar-nos – e bem – muitas coisas, mas não estas contradições. O romance é ideal para esquadrinhar tudo o que tem lugar na consciência do ser humano, que é contraditório e possui o dom de mentir e de acreditar nas próprias mentiras. E isto é parte essencial do relato comunista.
No caso de David e também do pai de Sergio, isso pode ser interpretado como uma questão de sobrevivência ou mesmo auto-justificação, isto depois de uma vida inteira dedicada à causa.
Um destes dias estava a ler “O Homem Rebelde”, um ensaio de Albert Camus, no qual este questionava a ideia de que para se ser um homem progressista e de esquerda havia que fechar os olhos diante dos excessos do comunismo soviético. Camus aponta o dedo aos Gulags, ao estado policial que assassinou e torturou, e diz-nos que é importante não fechar os olhos a isso. Sartre, pelo contrário, afirmou que falar disso seria fazer o jogo do inimigo, e que o universo dos campos de concentração da União Soviética era tão inadmissível como o uso que deles fazia a imprensa burguesa. Para ele, um sistema de prisões que matou vinte milhões de pessoas era semelhante aos jornais do ocidente que deles falavam. Estas contradições, esta capacidade para o auto-engano e a justificação, são uma parte fascinante de todo este relato – e a melhor forma de contá-lo é sem dúvida através da ficção.
Diz-se que em cada comunista existe um ateu confesso. Não deixa portanto de ser curiosa esta passagem que encontramos a certa altura: “Já compreendera que a revolução era inseparável de um certo puritanismo; sabia que Lenine copiara a organização comunista de um certo puritanismo inicial, e uma proibição inviolável pesava sobre as relações entre homens e mulheres”.
É algo já muito estudado. A forma como Lenine organizou as primeiras formas do comunismo soviético, fê-lo deliberadamente sobre os modelos do cristianismo, uma estrutura puritana que castrava os prazeres. Os verdadeiros militantes não se preocupavam com o sexo ou com o prazer, apenas importava a revolução. Trata-se de uma estrutura religiosa na medida em que existe uma figura suprema, inquestionável, e a relação dos militantes com essa figura é religiosa. Creio que foi algo muito astuto, porque responde ao desejo do ser humano de seguir uma figura transcendente. Sergio tinha perfeita noção disso. Ele di-lo com total clareza, não se trata de uma interpretação minha.
Raul – alter-ego de Sergio Cabrera na guerrilha -, a certa altura, formula – apenas para o leitor – a pergunta que o acompanhou durante toda uma vida, para a qual acabou por não obter resposta: “Em que momento os pais chegam à convicção de que a revolução pode educar melhor os filhos do que eles próprios?”. Ao longo dos sete anos e mais de trinta horas de conversas gravadas com Sergio Cabrera, encontraram – o Sergio e o Juan – a resposta?
Não. Depois da sua saída da guerrilha, o silêncio que se impôs na família do Sergio foi duro e radical. Tanto ele como Marianella confessaram-me, quando leram o livro, que não sabiam das histórias um do outro. De forma que o livro se converteu num lugar onde ambos poderiam aprender sobre a vida um do outro e, com isso, sobre a própria vida. Isso foi para mim muito comovente.
Quando começou a falar com Sergio a ideia era já a de escrever um livro?
Demoro sempre muito tempo a escrever um livro, porque necessito de alguns anos para explorar o tema. Consegui convencer o Sergio a falar em 2013, e o projecto inicial para esta história foi um filme. Sergio queria que escrevesse uma história de ficção, baseada nos seus anos passados na China. Foi para isso que nos sentámos a falar. Escrevi um argumento, duas páginas de uma história de ficção, que ele apresentou a uma produtora na China, que lhe disse que a história nunca iria passar na censura. Esse projecto fracassou, mas por essa altura eu estava já completamente seduzido pela sua história. Foi então que lhe disse que gostaria de escrever um livro sobre a sua vida, que veio a resultar de sete anos de conversas. Tive também a intuição de falar com Marianella, a irmã de Sergio, e aí o livro acabou por se transformar numa outra coisa.
Refere na nota final que, nos dias caóticos da quarentena, “arrumar um passado alheio foi a maneira mais eficaz de lidar com a desarrumação do presente”. É também nessa nota que encontramos a explicação para a epígrafe com que abre o livro – “…um romance deveria ser a biografia de um homem ou de um caso, e toda a biografia de um homem ou de um caso deveria ser um romance” -, mas também para uma ideia de interpretação que vai além dos factos e entra no território da “imaginação moral”. Isto faz de si um arqueólogo literário, um intérprete das vidas alheias que vê no individual uma janela aberta para alcançar a universalidade?
O que sempre digo, sobretudo quando falamos do passado público, dos países e das sociedades, é que os romancistas são historiadores das emoções. A História ocupa-se dos feitos, lida com dados e factos, mas o romancista é um recolector de emoções, e é isso que este romance conta e mostra. E, para que tal fosse possível, tive de fazer um exercício próprio do escritor: imaginar e interpretar uma outra vida. Ao fazê-lo, coloquei em cena emoções que não pertencem apenas à história colombiana, à história portuguesa ou à história chinesa. Tratam-se de emoções humanas e universais. Se o romance não conseguir isso é para mim uma perda de tempo.
Tão universal que faz com que a distinção entre personagens reais ou inventadas pareça supérflua.
Creio que tenho com Sergio Cabrera a mesma relação que Virginia Woolf tem com Mrs. Dalloway, ou que Dostoievski tem com Raskolnikov. É a mesma relação. Sergio é uma personagem que criei a partir da minha imaginação, da minha interpretação dessa vida que não é a minha.
Em 2017, quando o entrevistei a propósito de “A Forma das Ruínas”, brinquei com a pergunta que Carbalho lhe teria feito – “Estará à altura de escrever o livro da sua vida?” -, e se aquele seria o livro da sua vida. Respondeu-me que tinha sido “a melhor tentativa – não sei se o melhor livro – que fiz para entender a relação que tenho com o meu país e a sua violência, para entender os mecanismos internos da violência colombiana, desvendando alguns segredos e mistérios, públicos e privados, que marcaram a minha vida”. Continua a ser uma utopia pensar na Colômbia como um lugar mais progressista e liberal? Mudou alguma coisa desde 2017?
Mudou para pior. A Colômbia é, para mim, essencialmente um lugar de oportunidades perdidas. Um lugar onde muitas coisas positivas tiveram a sua oportunidade e acabaram por não se realizar. E isso aconteceu porque nós, cidadãos, não tivemos o valor, a astúcia, a inteligência ou a empatia para cortar os ciclos de violência que sempre nos marcaram. Os acordos de paz foram aprovados no ano de 2016, depois de terem sido rejeitados pelos votantes. Foram modificados, corrigidos e adoptados. Desde então, o partido do novo governo fez todos os possíveis para os sabotar, entorpecer, ainda que, por outro lado, declare à opinião pública que os está a defender e implementar. O resultado disso é que somos hoje um país muito mais violento do que o éramos em 2016 ou 2017. Os líderes sociais são assassinados todos os dias, os guerrilheiros desmobilizados são assassinados todos os dias, e a retórica do governo consiste em usar recorrentemente esses acordos para dividir e enfrentar os cidadãos. Tudo isso tendo em vista as eleições do próximo ano. Sou muito pessimista, creio que podemos estar a aproximar-nos de uma nova explosão de violência, parecida com a que tivemos no final do século passado. O que será uma prova de que somos um país incapaz de cortar com a sua relação com a violência, que se auto-alimenta e se perpetua. Oxalá me equivoque.
Fotos: Luísa Velez (Deus Me Livro)
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