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Folio 2021: Há um Cadáver Esquisito que bebe cerveja

Por Pedro Miguel Silva · Em 20/10/2021

Habituámo-nos, enquanto crianças, a que todas – ou quase todas – as histórias começassem por “Era uma vez”. No caso do Cadáver Esquisito, nascido quando nem sequer corpo ou nome de baptismo tinha, o ponto de partida foi um outro, mais virado para um exercício imaginativo: e se?

O desafio partiu, como quem não queria a coisa – ou se calhar até queria -, de João Brazão, “alguém que sabe abrir os segredos de certas substâncias, combinar levezas e amargores, o líquido e a luz, ou seja, um aprendiz de feiticeiro”*. Um mestre cervejeiro que, a juntar à veia de Panoramix, cultiva também o apreço pela bela da Literatura. Cercado da boa gente da Abysmo, que para lá da dedicação à literatura se perde de amores pelo líquido amarelo lupuloso, sentiu-se como peixe na água – ou, se quiserem, na cerveja. Nascia, de parto natural e sem recurso à epidural, o Cadáver Esquisito, que junta uma cerveja, seis escritores e outros tantos contos, um esmerado editor, um ilustrador e um designer, num cruzamento entre o álcool e a literatura onde há ainda espaço para um saco, um livro e uma longa-metragem.

O Deus Me Livro esteve à conversa com João Paulo Cotrim, fundador da Abysmo, esmerado editor e bom bebedor – e autor de um dos seis contos que fazem parte desta aventura literária -, que nos contou tudo sobre este Cadáver Esquisito. Um cadáver que gosta de ler e, mais ainda, de beber cerveja. Uma cerveja que, nas palavras do seu artesão maior, reza mais ou menos assim: «Um pouco turva, com tons de âmbar claro e uma espuma cremosa e persistente. Além de um sabor de estilo belga, com notas de especiarias e banana, aroma e amargor do lúpulo, num final seco». Nós, que provámos, damos-lhe razão.

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Que cadáver esquisito é este que a Abysmo desenterrou, num caixão que vinha carregado de paletes de cerveja?

Desenterrámo-lo do nada. O mecanismo do Cadáver Esquisito é uma espécie de maratona, feita na hora, no sentido de ser a conjugação de vários sabores, em várias áreas, que não apenas a literária. Temos o mestre cervejeiro, o João Brazão, que é também um grande leitor, e que de repente descobriu em autores mais ou menos relacionados com a Abysmo a mesma paixão pela cerveja. Uma bebida que tem um universo suficientemente rico, comparável ao do vinho, e que normalmente desconhecemos, falando dela como uma espécie de refresco que se bebe muito fresco e no Verão. Só mais recentemente começámos a ter uma noção clara da sua riqueza cultural.

Que relação existe entre estes seis contistas e o mágico líquido amarelo?

O Afonso Cruz tem sido o grande embaixador da cerveja, sobretudo da artesanal, e até já se dedicou à sua produção. O Luís Carmelo praticamente só bebe cerveja, no contexto da Mymosa e da Abysmo está sempre de mini na mão. O Paulo José Miranda, um excelente avançado centro que fui contratar ao Brasil, foi-me buscar ao aeroporto e deu-me um curso intensivo e acelerado sobre a riqueza das cervejas de Curitiba. Curitiba é a capital da cerveja no Brasil, com uma universidade da cerveja, uma série de IPAs e muita experiência à volta da cerveja. O Luís Afonso teve, há cerca de vinte anos, a Vemos, Ouvimos e Lemos, uma livraria independente fantástica, muito competente que, para lá de toda a oferta literária, tinha um barzinho com um apreciável panorama de cervejas, que naquela época era impossível encontrar em Lisboa. Tinhas em Serpa e tudo por causa do gosto e do culto do Luís pela cerveja. O Valério (Romão) é outros dos casos que, embora não recusando o vinho – que é também o meu caso -, é também adepto da cerveja, em parte por causa da influência do Paulo Miranda e da muita reflexão, conversa e paleio que tivemos sobre a cerveja. Faria sentido que este primeiro volume reunisse estes autores e não outros.

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Com esta apresentação desarmaste-me um pouco em relação à próxima pergunta, de qualquer forma aqui vai ela: as mulheres não gostam de cerveja?

Isso é uma outra conversa. A minha relação com o politicamente correcto, em todos os seus aspectos, não é boa. Não me sinto na obrigação de cumprir nenhuma quota, mas muito provavelmente, como há mulheres que nos são próximas, que bebem e cujo trabalho me interessa, é natural que participem num outro volume, mesmo que seja para dizer mal da bebida. Aliás, estes seis contos não são sobre a cerveja. Alguns usam-na como pretexto, mas não são sobre cerveja, sobre beber ou sobre o álcool e os seus efeitos. Até poderia ser, o tema era completamente livre seguindo a lógica deste Cadáver: deixas uma ponta pela qual pegas e continuas. A primeira ponta fê-la o João com a criação da cerveja.

E que cerveja é esta?

Uma cerveja especial, uma IPA belga, muito equilibrada a meu ver, que segue o culto do amargor mas mantém um grande equilíbrio. É uma cerveja popular, que tanto pode ser bebida como aperitivo ou a acompanhar uma refeição. A cerveja é a mesma nas seis garrafas, o rótulo – e a história – é que muda.

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O design desempenha também um papel fundamental.

Sim, o design é outra das pontas a que te ligas. A abordagem do Marko Rosalinne não foi apenas a de fazer o rótulo. Já havia a ideia de partir da ilustração, até pelo facto de o Nuno Saraiva ter feito umas coisas para o João Brazão, mas o Marko era a pessoa certa para começar esta aventura connosco. Deixou-se fascinar por todo o processo de criação – com a conversa que tivemos com cada um dos autores, com o modo como o João introduziu a questão da cerveja – e desatou a pensar nisto de forma mais global. Tanto que há-de surgir uma longa-metragem com cada um dos autores, à volta da ideia de criação. O logótipo do Cadáver Esquisito é um compósito, feito com vários tipos de letras. O Marko fez uma abordagem bastante alargada que, no fundo, é tudo aquilo que nos interessa. Isto é cerveja mas é também uma série de outras coisas, um modo de olhar para a edição que vai muito para além do objecto livro. De algum modo, é como se fizesses vinho numa adega mais ou menos artesanal.

Talvez o vinho possa vir a ser o próximo projecto.

O universo da cerveja é muito comparável ao do vinho. Tenho tido algumas conversas com o Afonso (Cruz) à volta disso. Não sei se consigo decidir entre a cerveja e o vinho. O vinho tem outras ressonâncias ancestrais, tem a ver com o sítio onde nasci e onde vivo. A cerveja é uma coisa mais nórdica. Embora tenhamos a sua presença histórica em toda a Europa, é mais do frio a norte que do sul quente e das vinhas. Mas isto seria uma conversa mais ou menos interminável e eu acredito, como acredito para uma série de outros casos, que o coração é como uma casa de putas: tem assoalhadas para toda a gente. Posso perfeitamente ter uma assoalhada para a cerveja e uma outra para o vinho. Não sou obrigado a decidir. Mas tudo isto surgiu de forma tão integrada que teria de aparecer qualquer coisa do género para o vinho.

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A ideia foi desde logo o conto estar disponível na própria garrafa, em antecipação ao livro?

Isso é a graça de teres logo o conto disponível, um detalhe que veio do design. Esta lógica do rótulo desdobrável não foi inventada pelo Marko mas, de qualquer forma, é um achado poderes estar a beber enquanto lês o conto na garrafa, sem precisares do livro. É simultâneo, automático. E há também aquela coisa meio infantil de aproveitares a electricidade estática para o rótulo regressar ao sítio, fiquei fascinado com isso. E que permite também integrar a ilustração do Nuno Saraiva, que no fundo é uma ilustração dupla: primeiro a cores e depois numa espécie de reverso. Lá está, o conjunto das coisas que nasceram aqui vieram, também, do fascínio com a ideia da criação. Desenterrar o Cadáver é, no fundo, dar vida a qualquer coisa que não estava até aí visível. Há um desvelar onde tudo acaba por fazer sentido.

(Interlúdio: neste momento, e uma vez que a política da casa Deus Me Livro permite beber em serviço, João Paulo Cotrim dirige-se à máquina para nos servir umas imperiais desta cerveja literária. É muito, muito boa. Uma blanche com o amargor no ponto. E um belo teor de álcool, que assinala 7,7 na escala de um Richter mais boémio)

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Quem quiser comprar já a cerveja, como é que o pode fazer?

A cerveja vai estar à venda online, através do site da Abysmo, mas temos já uma série de pedidos para livrarias que têm bar ou sítios que vendem cerveja artesanal. Esta primeira produção foi de 600 garrafas de 7,5cl, e creio que iremos esgotar esta primeira tiragem antes mesmo de a poder colocar no mercado.

O livro será lançado aqui no Folio, no dia 22 de Outubro (19h30, Livraria Artes e Letras). Fala-nos um pouco da edição.

O livro é um pouco o prolongamento disto tudo. Do ponto de vista do design, o Marko revisitou um pouco os velhos policiais, e mostra um trabalho muito cuidado do ponto de vista da tipologia. Mas é também uma brincadeira com algumas das tendências contemporâneas. Tem um corpo grande, é uma espécie de piscadela de olho ao trabalho da tipografia, e vai ser de pequeno formato para caber dentro do saco. Enquanto Cadáver Esquisito, a ideia é não saberes bem quando é que aquilo acaba. Desdobras o papel e há mais uma frase que pode continuar, e o livro no fundo brinca um bocadinho com essa ideia de jogo, tem um carácter lúdico muito forte. Não sei se vamos conseguir fazê-lo – há quem possa considerar a ideia de mau gosto -, mas gostava de ter um caixãozinho, um esquife mesmo à séria, para a garrafa ser servida dentro do caixão. “Olha, traz-me aí o cadáver do Cotrim”. Ou então: “Quero o cadáver do Romão”.

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Um caixão personalizado para cada autor?

O mesmo caixão para todos, não compliquemos (risos). Em Portugal não temos a mesma relação com a morte que os mexicanos têm. E há aqui qualquer coisa de mexicano. Há um detalhe de que me tinha esquecido, que é o facto de isto ter acontecido em momento de pandemia. Começámos a falar nisto antes, mas o momento do nascimento foi exactamente há um ano, entre pandemias, quando fizemos o lançamento conjunto – Abysmo e Nova Mymosa – das coisas que estavam atrasadas. O João foi lá e um de nós, já não me lembro quem, perguntou: “Quando é que fazemos a cerveja?”. O processo começou assim, durante a pandemia. Muitos dos textos falam sobre a morte, o que é um detalhe curioso. E nessa altura a cerveja não tinha ainda o nome definido. Acabou por ser tudo tão redondinho como uma garrafa, como um rótulo que, com a electricidade estática, regressa ao sítio. E a criação é um pouco isto: uma luta contra a morte, enfrentada com a alegria suscitada pela partilha, pela celebração.

*João Paulo Cotrim, no Hoje Macau (14 Abril 2021)

Depois do FOLIO, onde poderá ser visitada até dia 24 de Outubro, a exposição de ilustração, design e tipologia Cadáver Esquisito segue para a livraria Ler Devagar, em Lisboa, onde se poderá também experimentar – ou levar para casa – a cerveja.

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Pedro Miguel Silva

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